Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Calypso

Cinema de oposição

por Bruno Carmelo

Em meio a tantos filmes sobre Dilma, Lula, Aécio e Temer exibidos no Festival de Brasília, a mostra Caleidoscópio se dedica a outra forma de política: um engajamento das imagens, da expressão cinematográfica alheia às convenções. Os diretores Rodrigo LimaLucas Parente afirmaram acreditar numa “forma livre” de cinema, o que resulta em Calypso, um filme alegremente desconexo, não-narrativo, não-linear, sem buscar significados exclusivos nem discursos claros. Ele nega o cinema como narrativa, como entretenimento, como veículo de uma mensagem. Aqui, a arte visual serve como poesia aspirando a um ideal de abstração. A imagem busca apenas ser imagem - ao mesmo tempo matéria-prima e finalidade.

Seria difícil, ou mesmo improdutivo, traçar uma sinopse do projeto. Aliás, este texto inteiro corre o risco de soar contraproducente, por tentar aplicar racionalidade a um filme que foge destes padrões. No entanto, na impossibilidade prática de efetuar uma crítica em hai-kai, em poesia concreta ou sob signos abstratos, seguem algumas ideias sobre o labirinto a céu aberto proposto pelos diretores. A dupla se dedica à reconfiguração do corpo humano: uma mão transforma-se na tela onde se costuram desenhos com agulha e linha, o corpo de Calypso (Julia Gorman) se transforma numa estátua sobre as rochas, o corpo de Ulisses (Walter Reis) é convertido na pele de animais.

A propósito de animais, a obra efetua uma ampla exploração da natureza, ou ainda da dualidade entre o natural e o artificial. Partindo de uma paisagem clássica – as pedras ao lado do mar, em registro realista de luz e câmera -, sugere um universo fantástico, uma espécie de pesadelo diurno contrastado com o registro realista de filmes históricos do cinema nacional. Os personagens emitem sons animalescos indistintos, transformam-se em bichos. O céu flagra ao mesmo tempo os pássaros e os aviões. As poses são corriqueiras, no entanto as poucas falas compreensíveis articulam ideais filosóficos distantes da linguagem oral. “Sair é viver, entrar é morrer”, afirma a protagonista. Retoma-se o imaginário da fuga, ainda que não se saiba de onde se foge, nem para onde se vai.

Os sons são trabalhados com esforço considerável para não serem compreensíveis, combinando línguas estrangeiras sem legendas com distorções nos diálogos em português. A trilha sonora, de sons eletrônicos distorcidos, se preocupa com a condução do ritmo, no entanto as bocas abertas valem pelo imaginário do grito, independente do conteúdo das frases gritadas. O que o filme tem a dizer – sobre a estética, sobre a desconstrução da forma, sobre a negação dos sentidos –, ele o faz pelo avesso do didatismo. O prazer de Lima e Parente se encontra em complicar, ao invés de esclarecer; ou ainda em se perder, ao invés de se encontrar.

O valor da empreitada jamais poderia ser avaliado de acordo com padrões convencionais, aplicáveis a outros filmes. Enquanto obra conceitual, Calypso brinca com suas associações anárquicas de modo próximo do aleatório – a cronologia é outro elemento evitado. O prazer do espectador diante dessa projeção se encontraria no choque do estranhamento, nos estímulos tão distintos daqueles encontrados mesmo em obras provocadoras que circulam festivais engajados como Brasília. Os diretores destroem formas e regras com destreza, ainda que não necessariamente construam alguma estrutura sólida por sobre os destroços.

Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.