Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Marés

Espirituosos

por Bruno Carmelo

No imaginário popular das telenovelas e das narrativas melodramáticas, o alcoolismo está associado a momentos espetaculares de catarse ou ruptura: os personagens provocam escândalos, constrangem a si e aos outros, tornam-se agressivos, choram no dia seguinte, imploram por perdão, sofrem recaídas dolorosas rumo à salvação através de um novo amor, nova religião ou pela força de vontade do indivíduo. Esta representação da dependência química é intimamente ligada a um julgamento moral – a pessoa é boa ou ruim, forte ou fraca –, além de um registro de exterioridades, do corpo que cambaleia, cai, chora, grita. 

Neste contexto, é um prazer se deparar com um drama como Marés, dirigido por João Paulo Procópio. O principal conflito de seu protagonista, o fotógrafo Valdo (Lourinelson Vladmir) é a dependência do álcool, que o leva ao divórcio e à possível perda da guarda de sua filha pequena. No entanto, o roteiro e a direção fogem às armadilhas fáceis da jornada de superação. Primeiro, por não martirizarem o personagem: Valdo é um tipo comum, que sabe beber socialmente em alguns instantes, e cuja percepção de mundo não se corrompe pela influência do álcool. Ele não é punido pelos atos irresponsáveis, que lhe trazem a sensação de impotência ao invés da corrupção de sua identidade. Segundo, por não vilanizarem o álcool: o drama retrata o prazer comum dos momentos etílicos e a possibilidade do uso equilibrado do mesmo.

O roteiro opta por alguns recursos simples, que o distinguem da média. O tempo é construído através de longas elipses que possibilitam o distanciamento em relação aos fatos. Ao invés de se concentrar em cenas de bebedeira, o filme prefere revelar o que vem antes e depois destas. No lugar dos vexames em público, confronta o protagonista à solidão, aos silêncios dentro de sua casa, ao sentimento de impasse. Acima de tudo, não promete uma solução ao problema: a ficção se fortalece pela capacidade de enxergar a vida de Valdo como um processo, e não a preparação para um final feliz. O fotógrafo não se transforma em exemplo, apenas um caso como outros. Nesta banalidade se estabelece o potencial de identificação: é mais fácil se enxergar no humanismo discreto deste filme do que na histeria dos bêbados folclóricos.

Outras qualidades do projeto se encontram na boa construção de ambientes e personagens: o ritmo das conversas entre amigos ou namorados soa natural; as reações da ex-esposa Clara (Julieta Zarza) e dos amigos próximos (Sérgio Sartorio) são contidas; as relações sexuais valorizam o prazer da mulher. Além disso, por se passar em 2016, a narrativa insere de modo orgânico as discussões sobre os rumos do país e a retirada de Dilma Rousseff do poder. Este pano de fundo serve como sintoma da estagnação de Valdo e de sua descrença com o futuro. João Paulo Procópio demonstra um bom olhar de cronista, impregnando a história com gestos, palavras e ações próprios à sua época.

Alguns fatores poderiam ser questionados, como a nudez feminina, muito mais explorada do que a masculina – até quando essa assimetria será considerada natural? – e certos luxos da vida do protagonista, incluindo o casarão pouco justificado pela vida aparentemente comum de fotógrafo. Mesmo assim, Marés é conduzido como um sensível estudo de personagem, coroado por uma atuação excelente de Lourinelson Vladmir. O ator é muito seguro em suas expressões, construindo uma evolução gradual e verossímil ao personagem. Vladmir tem uma presença tão forte (vide Para Minha Amada Morta, Rua Augusta) que mereceria ser muito mais utilizado pelo cinema brasileiro. Repousam nele a alma e a complexidade de um projeto pequeno, e ao mesmo tempo tão marcante quanto Marés.

Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.