Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Bloqueio

O fracasso do pensamento

por Bruno Carmelo

Durante o lançamento do documentário Camocim, o diretor francês Quentin Delaroche se disse surpreso com o esvaziamento ideológico da sociedade brasileira. As eleições da cidade de Camocim de São Félix, em Pernambuco, giravam em torno de promessas vagas de “mudança” e “transformação”, ainda que não indicassem para qual direção. Com Bloqueio, dirigido em parceria com Victória Álvares, o cineasta efetua uma obra irmã, um segundo olhar à crise da política representativa no país. Para isso, observa o ato político de pessoas que detestam a política; o grito desesperado de manifestantes que não sabem exatamente o que buscam, nem mesmo onde encontrá-lo.

O objeto de estudo, desta vez, é a greve dos caminhoneiros em maio de 2018, com efeitos imediatos no abastecimento de produtos em todo o país. “Estamos fazendo história”, afirma um entrevistado, em sintonia com outras vozes exigindo reconhecimento da importância de seu trabalho. Mas o que reivindicam, exatamente? Uns falam na baixa do preço do diesel, outros querem a saída de Temer, outros clamam por uma intervenção militar. Muitos pedem o fim de todos os políticos, simples assim. No meio da paralisação, canções evangélicas são entoadas pelo grupo. Apesar da apatia e da posterior truculência dos militares, os caminhoneiros ainda enxergam no exército o ideal de ordem e disciplina que julgam indispensáveis ao país. “Nós não temos alternativa”, justificam.

Delaroche e Álvares efetuam um panorama detalhado destas contradições de raciocínio. Através de uma montagem excelente, bem ritmada e impecável no uso de elipses, conseguem observar as divergências dentro do grupo, compreender o desespero coletivo e a maneira como buscam soluções. Seria fácil apontar com ironia as falhas lógicas dos argumentos (“Queremos democracia!”, grita um caminhoneiro em defesa da intervenção militar), mas felizmente os cineastas evitam o julgamento moral e o olhar paternalista. O ponto de vista é respeitoso, e acima de tudo curioso: Delaroche indaga os manifestantes, pede que se expliquem, mas jamais retruca após obter respostas.

Partindo de um momento muito específico da história política recente, Bloqueio constrói uma imagem do país como um todo. As reivindicações dispersas dos caminhoneiros são herdeiras da confusão ideológica que toma as ruas pelo menos desde junho de 2013, quando estudantes pediam a redução da passagem de ônibus enquanto outras vozes exigiam o fim da urna eletrônica. Nesta época já apareciam os pedidos de intervenção militar – sempre ela, salvação lendária de quem se esqueceu do que o Brasil atravessou entre 1964 e 1985. Mas “só sofreu com a ditadura quem era vagabundo”, corrige um manifestante, ao contrário da “gente de bem” que teria vivido um momento de tranquilidade.

As sucessivas tentativas de conversa acabam por transparecer uma derrota do pensamento, fruto de décadas em que a população de baixa renda não se vê representada pelos candidatos à disposição. A direita, ilustrada no documentário por Temer, é vilanizada pelos preços altos do combustível. A esquerda, simbolizada por uma professora que busca dialogar com os grevistas, é descartada por querer “soltar bandido”. Justamente indignados, mas sem saber como dirigir esta indignação, os protagonistas acabam virando o ódio contra a própria democracia – estratégia esta que tem culminado nas altas intenções de voto do candidato de extrema-direita às eleições presidenciais. Estes indivíduos não sabem como mudar o Brasil, apenas querem que ele mude. Querem algo extremo, radical, violento, algo que não se pareça, nem de perto, com o discurso conciliatório e ponderado dos políticos profissionais. Por isso, são tentados pelo fascismo e militarismo.

Um dos desafios diante desta complexa discussão se encontra na organização de ideias, imagens e sons. Victória Álvares faz o possível para obter clareza no som direto, e consegue encontrar um foco entre o caos, uma linha de pensamento entre as vozes que se sobrepõem. Após cada discussão barulhenta, a montagem imagética de Quentin Delaroche permite um alívio, um respiro silencioso, uma observação dos espaços, dos corpos, das roupas. O documentário também funciona como registro histórico, sintoma de um momento que abarca de mogo orgânico a pluralidade de sotaques, de comportamentos, de pontos de vista.

Depois de tanto tempo parados na estrada, uma caminhoneira avista a chegada dos tanques do exército. “Será que eles estão aqui para tirar a gente ou para proteger a gente?”, pergunta, num resumo tragicômico da situação. Bloqueio – ótimo título, aliás – serve como retrato de um impasse nacional, prévia de uma explosão que se anuncia há anos, e cujo estopim pode ocorrer em 2019. Além disso, ilustra de modo sucinto estes tristes tempos em que palavras perderam seu sentido, fatos se tornaram questão de opinião, e discursos se ódio de confundem com liberdade de expressão.

Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.