Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
A Sombra do Pai

A iminência do terror

por Bruno Carmelo

À primeira vista, Cristina (Luciana Paes) e Dalva (Nina Medeiros) parecem mãe e filha. Aos poucos, descobrimos que se trata da tia da garota, que ainda mora com o irmão e a sobrinha enquanto não concretiza o sonho de se casar com alguém, ter filhos e se tornar dona de casa. O pai, Jorge (Júlio Machado), trabalha na construção civil, e não demonstra afeto pela garota. A mãe morreu. Há algo estranho neste núcleo familiar cujas relações são movidas a gestos paliativos ou indispensáveis. Cristina cuida da garota, mas não se sente mãe. Júlio não cuida da garota e não se sente pai. Durante as férias, Dalva se encontra abandonada em sua casa.

A ideia do abandono simbólico não é percebida como uma situação aberrante, afinal, a família de baixa renda tem recursos necessários, não passa fome. Sozinha em sua descoberta do mundo, a garotinha enterra bonecas e guarda os restos do corpo da mãe, exumada. Em alguns momentos, assiste a filmes assustadores como A Noite dos Mortos-Vivos e O Cemitério Maldito, que sugerem o retorno do familiar morto. Assim, com a ajuda das crendices da tia, Dalva acredita ser capaz de trazer a mãe de volta. Estamos num território em que a fantasia se anuncia como possibilidade, sem perder o horizonte realista. Durante a maior parte da trama, o espectador pode se perguntar: a menina tem poderes de fato? Ou seriam apenas manifestações da imaginação infantil?

A diretora Gabriela Amaral Almeida situa sua obra no território da sugestão. Embora faça referências a filmes sangrentos e violentos, não pretende reproduzir nada igualmente explícito. Suas imagens permitem o silêncio, a contemplação dentro dos planos fixos, enquanto a montagem se esmera em suspender os elementos fantásticos pouco antes ou depois de acontecerem. O público fica na antessala de alguma irrupção do horror, à espera de confirmações. Enquanto isso, os símbolos – a ferida nas costas do pai, as bonecas, a trança da mãe, a lâmpada quebrada, o armário – contribuem a uma atmosfera de terror, mais do que à concretização do terror em si. Somos preparados para a presença de fantasmas e zumbis que talvez não venham nunca.

Ao privilegiar o aspecto dramático do horror, A Sombra do Pai se constrói como um filme de imagens brandas e sugestões fortes. Júlio Machado, no papel do pai bruto e traumatizado pela morte da esposa, tem que carregar o mundo no olhar, sem ganhar oportunidades de sublimação das dores. Luciana Paes, especialista em personagens expansivas – vide a ótima composição em O Animal Cordial, da mesma diretora – interpreta uma tia de baixa instrução, um tanto conformada com sua situação, e movida pelas emoções ao invés da razão. A garotinha, determinada e forte, também se cala na maior parte do tempo. Pelo encontro entre três sensibilidades introvertidas, numa narrativa alheia a reviravoltas ou revelações, o ritmo pode soar arrastado – pelo menos até o espectador perceber que a suspensão de promessas e de fatos constitui um objetivo em si.

Na direção, Almeida se revela segura como sempre, em enquadramentos muito bem pensados e planos de duração estudada. Estamos diante de um mecanismo cerebral: enquanto muitos diretores jovens permitem a espontaneidade, o improviso, as asperezas de teor caseiro ou amador, a cineasta trabalha num universo rigidamente calculado. O efeito se torna ainda mais interessante num gênero tão epidérmico quanto o horror, que trabalharia em sua essência com os estímulos de sensações, com fenômenos exteriores ao invés de sensações internas. Mas o filme prefere trazer o horror para dentro dos personagens, utilizando o luto como fonte de perturbação e gatilho para o cinema de gênero.

O resultado é admirável, ainda que jamais permita aos seus personagens se expressarem, canalizarem suas pulsões, ganharem alguma forma de alívio ou explosão. As vozes e ações continuam presas, do início ao fim. A Sombra do Pai se assemelha a um longo teaser, no sentido positivo de sustentar a atenção e o interesse, mas também no sentido negativo de jamais entregar alguma forma de gozo. Ele poderia ser o início de uma franquia de zumbis, ou a conclusão de uma saga familiar. Mas prefere se situar entre os dois, recusando tanto a catarse do melodrama quanto a catarse do sangue e das vísceras. Talvez, pela exímia manipulação das angústias do espectador, deixe um grito preso na garganta, muito mais potente do que a maioria das cenas de mortes espetaculares nos terrores comuns.

Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.