Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Cam

Pessoas descartáveis

por Bruno Carmelo

Em um quarto cor de rosa, com bichos de pelúcia e almofadas fofas, Lola interage com fãs na webcam. Ela é gentil e atenciosa, disposta a acatar todos os pedidos: mostrar os seios? Sem problema? Masturbar até o orgasmo? Isso vai custar mais caro, mas tudo bem. Cometer suicídio? Bom, se é isso que vocês querem… Lola pega um facão, corta o pescoço. O sangue jorra, o corpo para de se mover. Então ela se levanta e comemora, felicíssima, a preocupação dos seguidores. Bem-vindos ao mundo fictício, virtual e impessoal de Cam, fábula sobre a vida e a morte de um avatar.

Fora dos shows na webcam, Lola é Alice, uma jovem de poucos amigos, relações familiares distantes, sem namorado. A ambiciosa performer dedica toda a sua energia a ganhar mais seguidores, subir no ranking do site onde trabalha, entrar para o top 50 e eventualmente roubar a liderança de Baby, garota que parece sequer se esforçar muito. Estudando o canal das concorrentes, ela percebe uma série de shows eróticos um tanto monótonos e infantis, além de muito semelhantes. Um dia, ao acordar, percebe que sua pontuação caiu, e pergunta indignada: “O que preciso fazer para me manter no topo? Parar de dormir?”. Ela chega, então, ao cerne da questão: Alice precisa precisa abrir mão de suas funções humanas, como o sono, a fome, a moral e os desejos, para ironicamente atender os desejos dos outros.

Quanto menos subjetividade ela tiver, mais agradará aos fãs. A configuração ideal deste tipo de universo é o robô, o boneco, ou talvez o fantasma, com sua corporeidade fluida, transparente, onipresente. Lola deve ser a projeção dos fetiches de qualquer um, e desta maneira, perder qualquer especificidade própria. A criatura se torna maior que o criador, a ponto de aniquilá-lo por completo: estamos numa versão atualizada e ultramoderna de Frankenstein, quando o avatar de Lola passa a ter vida própria, como se alguma sósia estivesse agindo em seu lugar. Ninguém percebe a diferença: e como poderia? Lola é apenas uma imagem, e imagens não morrem jamais, apesar de serem esquecidas a todo instante.

O diretor Daniel Goldhaber trabalha na chave do suspense psicológico, em dois momentos distintos: primeiro, o espectador é colocado na posição de seguidor de Lola - ficamos chocados com o suicídio, mostrado como real - e depois, quando aparece a concorrente virtual, passamos a adotar o ponto de vista da protagonista, inconformada com o fato de ser substituída por seu espectro, muito mais hábil na arte de conquistar fãs do que ela. Enquanto os personagens abandonam a performer real para abraçar a virtualidade, o espectador faz o caminho contrário, saindo do mundo das imagens para conhecer a pessoa por trás da ilusão. À medida que a concorrente passa a tomar conta da vida de Alice, ela é expulsa do jogo virtual, obrigada a conviver com os familiares, as pessoas nas lojas, os pretendentes que sonham em possuir seu corpo de fato. O mundo real, com seus julgamentos morais, soa tão inóspito quanto os meandros da Internet.

Cam funciona como um excelente comentário sobre a potência das imagens na contemporaneidade. Muito além de alertar sobre os perigos do universo digital, estabelece uma conexão com as imagens que criamos todos os dias para nós mesmos, os personagens fictícios que elaboramos para conquistar o afeto de outras pessoas. É impressionante a fluidez com que se passa da imagem da webcam para as imagens “reais” - elas mesmas provenientes de um filme, e portanto fictícias -, através do jogo de enquadramentos variados dentro do quarto rosa, ou da câmera deslizando lentamente ao redor das personagens, intensificando a aparência de vertigem. O apartamento escuro e os espelhos multiplicadores do elevador contribuem ao discurso de duplicidade e apagamento, enquanto a trilha sonora fornece uma perturbadora sequência de golpes secos como um metrônomo, ou talvez uma sequência de batimentos cardíacos.

Em meio a tantos suspenses que ocultam o segredo durante o maior tempo possível para aumentar o prazer da revelação, este projeto surpreende ao deixar zonas obscuras. Nem todos os conflitos serão solucionados, porque o país das maravilhas virtuais é muito mais potente do que a pequena vida de Alice. Ela ganhará uma vitória simbólica (a autoafirmação) e perderá outra (a descoberta da verdade por trás do avatar). Felizmente, o filme consegue transitar entre várias polaridades - verdadeiro e falso, real e virtual, o mundo e sua representação - até encontrar uma zona cinzenta e intermediária para situar sua protagonista.

Madeline Brewer, descoberta pela Netflix em Orange is the New Black e Hemlock Grove, não para de crescer a cada projeto, e encontra neste filme a personagem perfeita para os seus talentos. A atriz demonstra profunda variação emocional e técnica, tanto quanto Alice como enquanto Lola ou sua sósia virtual. Ela consegue ser forte e frágil, sensual ou desleixada, feroz ou delicada, conforme as cenas pedem, oferecendo seu corpo sem medo, mas também sem vaidade. A atuação magistral aumenta o impacto do conto de terror que não deixa de refletir, em última instância, sobre a natureza do cinema.