A arte no espaço-tempo
por Bruno CarmeloPara dialogar com o trabalho do artista plástico Nelson Felix, o diretor Cristiano Burlan encontrou uma estrutura bastante peculiar. Não espere encontrar um relato detalhado das obras, um apanhado do percurso histórico, nem elementos da vida pessoal. O que interessa, neste projeto, é o modo como o artista pensa, como surgem as suas criações. O que leva Nelson a percorrer os quatro cantos do mundo, despejando dados? Como ele enxerga a liberdade criativa, a prática da poesia? Estamos essencialmente no domínio das ideias.
É interessante que o artista explore em suas concepções concretas e teóricas dois elementos indispensáveis ao cinema: o espaço e o tempo. Alguns de seus trabalhos levaram décadas para ser concluídos, exigindo deslocamentos ao redor do globo. Para representar estas dilatações, Burlan brinca com o próprio material cinematográfico. Ele cria cenas longas e dilatadas dentro de um filme curtíssimo, de apenas 70 minutos, acompanha longas caminhadas de Nelson sem necessariamente se ater aos objetivos ou à localidade precisa, retrata o momento em que uma trajetória extensa dentro do carro leva ambos, o cineasta e o artista plástico, a se calarem e refletirem sobre a natureza. Junto da dupla, o espectador se perde nestas referências, podendo desfrutar puramente da estética.
E que estética, diga-se de passagem! Para tantos diretores que culpam os baixos orçamentos de seus filmes pela imagem pouco atraente, basta ver as composições rigorosas e deslumbrantes obtidas por Burlan através da textura digital de baixa qualidade. Após este filme, Mataram Meu Irmão e Antes do Fim, o cineasta confirma o seu talento singular para filmar praias, com sua poesia simples e melancólica. Neste caso, ele compreende que, mais importante do que tratar Nelson Felix como tema, é tratá-lo como forma, efetuando uma colaboração sinergética de linguagens artísticas: o cinema de Burlan dialoga com os desenhos de Nelson que dialogam com a poesia de Mallarmé. O filme se impregna da poesia do artista plástico, ao invés de comentá-la ou retratá-la.
“O desenho para mim é a coisa mais pura que existe”. “De certo modo, este trabalho é uma mordida no mundo”. A simplicidade e profundidade destes conceitos é portanto transmitida à estética cinematográfica, que privilegia os tempos mortos, a vida comum do artista em sua casa, o cachorro que o espera, os rabiscos durante um percurso no trem. Método Poético para Descontrole de Localidade resgata a ideia da deambulação de um cinema marginal, associada à lógica do road movie, no qual a viagem constitui uma finalidade em si própria. Paira uma atmosfera de liberdade artística e criativa total: jamais presenciamos Nelson Felix criando para alguma instituição específica, dentro de algum prazo, negociando valores. A arte flui com uma liberdade etérea, como se não fosse uma profissão, e sim uma necessidade pessoal. “Eu desenho compulsivamente”, confessa o artista para quem o desenho aplaca alguma necessidade íntima.
O resultado pode encontrar dificuldade em dialogar com o público médio, por suas cenas extensas, seus silêncios, sua recusa em entregar dados simples sobre quem Nelson Felix é, de onde vem, o que deseja. No entanto, ao fugir das obrigações informativas, Burlan torna-se livre para criar com a mesma pureza de seu objeto de estudo. É belíssimo o modo como a arte de um se funde com a arte de outro, numa simbiose em que o autor cinematográfico deixa tanto seu lugar privilegiado – afinal, pertence a ele a visão de mundo impressa na obra – para aderir ao ritmo e às ideias do artista observado, embebendo seu trabalho nos conceitos do artista plástico.
Filme visto no 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2018.