Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
O Homem Cordial

Tribunal popular

por Francisco Russo

Curiosamente, a premissa inicial de O Homem Cordial é semelhante à do recente Aos Teus Olhos, dirigido por Carolina Jabor, no qual um professor de natação é acusado de ter dado um beijo em um de seus alunos. Aqui, cabe ao vocalista de uma banda de punk rock a acusação de ser responsável pela morte de um policial, em uma confusão rocambolesca que viralizou na internet graças a um vídeo amador. Por mais que ambos os filmes retratem o tribunal popular que se tornou a internet atual, com julgamentos feitos com base em achismos e não em fatos, os caminhos percorridos pelas narrativas são bem distintos. Em O Homem Cordial, o diretor e também roteirista Iberê Carvalho - em parceria com Pablo Stoll, nesta última função - explora tal realidade para abordar a agressividade latente nos dias atuais, em seus mais diversos aspectos.

Diante de tal proposta, Iberê não só apresenta uma série de situações de confronto envolvendo seus personagens principais como, ainda, instiga o quanto pode a sensação de desconforto. Para tanto, posiciona a câmera sempre bem próxima ao rosto dos personagens de forma a ser quase opressora, muitas vezes abrindo mão da luminosidade para ressaltar o momento psicológico do evento retratado. O uso constante da câmera na mão transmite também a inevitável sensação de realidade e urgência, bem aproveitada em breves planos-sequência inseridos aqui e ali, envolvendo até mesmo movimentações bruscas decorrente da quantidade considerável de personagens em cena. Soma-se a isso o uso constante de carros cantando pneu, cujo som agudo também provoca a sensação de urgência; a passagem por uma rave, com seus flashes histriônicos ao ritmo bate-estaca; e uma trilha sonora que flerta escancaradamente com o suspense, inclusive por vezes exagerando um pouco na tensão sugerida.

No meio disto tudo, há um homem clamando por inocência sem jamais ser ouvido, entrando em uma espiral de violência cada vez maior devido à agressividade cotidiana, tão comum que por vezes soa banal. Da polarização política aos ânimos inflamados devido à exponenciação decorrente do tribunal da internet, Iberê deseja escancarar os preconceitos existentes em uma sociedade fraturada, seja por questões de cor, gênero, classe ou, em muitos casos, tudo isto junto e misturado. Assim é o Brasil, incoerente em sua recusa em se olhar no espelho de forma a não enxergar - e resolver - sua faceta excludente e violenta.

Entretanto, se esteticamente O Homem Cordial apresenta uma solidez que se fundamenta em sua posição crítica ao status quo, por outro lado o roteiro falha em vários momentos em relação ao desenvolvimento dos personagens, ora mal fundamentando certas decisões tomadas ora até mesmo entregando situações difíceis de acreditar, como a peregrinação pela cidade sem qualquer tostão ou mesmo celular. Para um cantor conhecido, acusado de assassinato tanto na internet quanto em programas de TV, aceitar se expôr de tal forma beira o inverossímil - o que, fatalmente, prejudica o desenrolar da narrativa.

Diante de tal proposta, o título O Homem Cordial é não só uma citação direta ao conceito estabelecido por Sergio Buarque de Hollanda em seu livro "Raízes do Brasil", lá nos anos 30 - do século XX ,- como também uma ironia, diante da agressividade inerente ao dia a dia. Em relação ao elenco, vale destacar o carisma de Thaíde em um personagem que poderia até ser melhor explorado e a intencional simetria em torno de Paulo Miklos, cujo histórico como vocalista dos Titãs traz uma naturalidade absoluta em sua interpretação como Aurélio Sá, ícone da banda Instinto Radical. Com um bom trabalho de direção e uma fotografia muito bem executada e idealizada por Pablo Baião, trata-se de um filme interessante em sua proposta que merecia um capricho maior em relação ao roteiro.

Filme visto no 47º Festival de Gramado, em agosto de 2019.