Espaços de afeto
por Bruno CarmeloHélio (Hélio Ricardo) e Juliana (Grace Passô) se sentam à beira de um laguinho sujo, num gramado pouco convidativo. Eles falam sobre suas vidas repetitivas, sem perspectivas de melhora. Questionam então o cheio ruim da água: “Isso aqui, é esgoto, não é?”, pergunta Juliana, ao que Hélio responde: “Mas também é paisagem”. Temporada, de André Novais Oliveira, adota um olhar igualmente generoso aos espaços urbanos. Para o diretor, as ruas dos bairros, os muros descascados, os tetos das casas com suas caixas d’água e as ruas sinuosas dos locais mal iluminados, tudo isso é paisagem, tudo é belo e digno de ser retratado no cinema.
Retomando a sensibilidade ímpar demonstrada em Ela Volta na Quinta (2014) e em diversos curtas-metragens, o diretor e a produtora Filme de Plástico voltam a observar o cotidiano da classe média sem miserabilismo nem idealização. As pessoas têm trabalhos mal pagos e pouco gratificantes ("mas pelo menos é concursado”), dividem o cachorro-quente com o cachorro faminto na rua, exibem aos colegas a foto do namorado sem camisa, enrolam no serviço quando já atingiram a meta diária. Oliveira é exímio cronista, capaz de incorporar num roteiro traços comuns do cotidiano que passam despercebidos à maioria dos roteiristas. Seus diálogos são pérolas de informalidade combinada com gírias, provérbios, num linguajar ao mesmo tempo chulo e carinhoso.
Os enquadramentos fixos e abertos são ideais para o desenvolvimento dos tempos mortos e a contemplação tanto dos personagens quanto do espectador. Existe muito mais a ver em cada imagem do que os protagonistas: há sempre o fundo das casas, das ruas, dos postes, indissociáveis à existência de Juliana e dos colegas do centro de combate a endemias da prefeitura de Contagem. Que bela ideia, aliás, a profissão da protagonista: Juliana é obrigada a entrar na casa das pessoas para efetuar seu trabalho. Ela revira os potes de plantas, vê as tralhas acumuladas, as piscinas cobertas. Sua profissão apaga as fronteiras entre o público e o privado, o que permite criar amizades com pessoas que Juliana provavelmente jamais encontraria. A protagonista funciona como alter-ego do diretor: a função dela é cuidar da cidade, casa por casa, como quem cuida de pessoas.
No papel principal, Grace Passô tem uma atuação excepcional porque esvaziada dos cacoetes técnicos, além de ser isenta de vaidades: o despojamento nos corpos e nas falas é excepcional. Russo Apr, no papel do colega de trabalho e principal coadjuvante, contribui ao jogo cênico com um humor afiado. Dona Zezé, mãe de André Novais Oliveira e atriz de Ela Volta na Quinta e Quintal, tem uma aparição póstuma que levou às lágrimas um cinema inteiro: ela interpreta uma figura simples, hospitaleira, que recebe Juliana em casa, oferece e um café e um bolo. E Juliana tem que tomar aceitar sim, porque ela faz questão: "Saco vazio não para em pé". Este carinho imenso faz da cena um testamento à generosidade da mãe e atriz, peça fundamental de um cinema tão familiar, feito por amigos, namorados, irmãos, mães dos atores e produtores. A intimidade e o cuidado entre essas pessoas são comoventes.
Coroado pela excelente trilha sonora, o drama ainda traz a sensação agridoce de que o tempo amarga os relacionamentos, sejam eles de amizade ou amor romântico. Mesmo assim, acredita numa resistência silenciosa, uma união entre essa gente que “vai levando” apesar das dificuldades. O social se mistura com o íntimo de modo orgânico. O diretor possui o talento imenso, e raro, para construir relações e espaços com tamanha naturalidade. Mesmo os quintais comuns são retratados com riqueza de enquadramentos, de escolha das lentes, de paleta de cores (a variação de tons azuis). Temporada revela um artesanato rebuscado e um amor maior que o mundo pelas pessoas e pelas cidades onde vivem.
Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.