Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Os Mortos Não Morrem

A volta da volta dos mortos-vivos

por Bruno Carmelo

Desde o princípio, este filme de zumbis se distingue da maioria das produções do gênero. Primeiro, ele anuncia com insistência que os mortos-vivos entrarão na trama e que “as coisas não vão dar certo no final”, de modo a anular voluntariamente o suspense. Segundo, o retorno dos mortos não produz qualquer senso de espetáculo ou pavor: os personagens, um tanto neutros, observam a catástrofe como se fosse apenas mais um problema em suas vidas miseráveis. Terceiro, retira-se a moralidade: os heróis não lutam contra os zumbis em nome da pátria, de suas famílias ou de seus entes amados. Ninguém possui laços afetivos duradouros com quem ser que seja. Quando reagem aos ataques, os habitantes de Centerville o fazem por inércia – não por acaso, um personagem importante se entrega de livre e espontânea vontade aos agressores.

É possível dizer que Os Mortos Não Morrem busca menos reproduzir os prazeres dos filmes de zumbis do que emitir um comentário bem humorado sobre a simbologia destes personagens. Comédias recentes do gênero, como Todo Mundo Quase Morto, buscavam funcionar ao mesmo tempo como paródia e homenagem, enquanto brincadeira e enquanto filme de zumbis autônomo. Jim Jarmusch se mostra menos pretensioso, produzindo humor pela indiferença em relação ao material humano e mesmo à crítica social embutida tradicionalmente nas histórias sobre mortos-vivos (vide o destino reservado aos personagens). O filme jamais se leva a sério, nem enquanto terror, nem mesmo enquanto paródia. Talvez por isso ele equilibre as quase inevitáveis referências pop com um humor clássico e datado – o prazer de ver um policial grande dentro de um carro pequeno, ou de testemunhar policiais apáticos diante de uma cena sanguinolenta. Quem são os verdadeiros zumbis?, pode-se perguntar, mas nem mesmo esta inversão simbólica seria realmente inovadora dentro deste tipo de narrativa.

Tamanho desapego permite que o roteiro introduza algumas piadas simples, mas surpreendentemente descaradas. Os personagens conservadores usam bonés escritos “Make America White Again”, ao passo que o policial gentil afirma que “suas pessoas preferidas são os mexicanos”. Por mais que soe divertido observar zumbis adolescentes procurando por Wi-Fi em seus celulares, estes alvos não deixam de soar óbvios. Este é o desafio diante das figuras tragicômicas que se encontram no poder atualmente, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países: é fácil demais parodiá-las, por constituírem caricaturas em si próprias. De que maneira criticar efetivamente Donald Trump e derivados sem se limitar à evidência de sua tolice? Como propor um discurso político que transcenda a retórica e perturbe o espectador, provocando uma reflexão?

Os Mortos Não Morrem se encontra longe de qualquer ambição do tipo. Retirando de seus atores o potencial mais imediato de suas composições – Bill MurrayAdam Driver interpretam os tipos indiferentes com uma mão nas costas, Tilda Swinton nasceu para compor figuras excêntricas como Zelda – a comédia se contenta em reincidir num caráter lúdico, sem malícia, quase infantil. É certo que o ritmo lento e a ação frustrada (os zumbis morrem com uma facilidade espantosa) subvertem as expectativas iniciais. No entanto, a narrativa tem pouco a oferecer ao espectador uma vez apresentados os seus truques. De fato, por mais bem executada e cuidadosamente produzida seja a trama – Jarmusch demonstra amplo domínio do ritmo e das brincadeiras metalinguísticas -, ela se desgasta pela falta de desenvolvimento. O cineasta sequer se preocupa em articular os diversos núcleos narrativos paralelos, abandonando a história dos hipsters de Cleveland e das crianças num reformatório.

O desgaste de significados produz seu ápice rumo ao final, quando um narrador simplesmente explica a conotação social dos zumbis e sua aplicação naquele contexto específico, de modo professoral e condescendente com o público. Mesmo assim, em suas repetições e sua inocência – a balada folk “The Dead Don’t Die” -, o resultado deve cativar o público sedento por acenos e referências, sem o caráter (literalmente) visceral que se aguardaria do gênero. Raros filmes se assumem enquanto brincadeira com tamanha transparência quanto este: basta ver os personagens admitirem que estão dentro de um filme, gerando um efeito cômico inesperado e um pouco tolo. Assim, permanecemos no domínio do faz de conta. Em outras palavras, ao invés da esperada comédia de zumbis, esta seria uma comédia sobre as comédias de zumbis, com todas as vantagens e desvantagens que o universo autorreferencial pode implicar.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.