Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Cabras de Merda

Os inocentes

por Bruno Carmelo

O drama chileno parte de intenções nobres e de um tema importantíssimo, especialmente nos tempos atuais, quando a América Latina sofre uma forte guinada à direita. O cineasta Gonzalo Justiniano deseja abordar a ditadura de Pinochet através das vítimas de perseguição política e violação de direitos humanos. Neste retrato, ele mistura três olhares muito distintos: o da chilena Gladys (Nathalia Aragonese), que organiza protestos secretos contra o ditador, o de seu filho pequeno, Vladi (Elías Collado), que não compreende bem a situação ao redor, e o do missionário norte-americano Samuel Thompson (Daniel Contesse), cuja missão de espalhar a palavra de Deus é prejudicada pelo contexto político.

Em teoria, o trio constitui uma maneira diversificada de explorar três lados da história, sem conferir protagonismo ao governo autoritário. Temos mulheres e homens, adultos e crianças, chilenos e estrangeiros, pessoas politizadas e alienadas. No entanto, os protagonistas chamam atenção pela ingenuidade: a criança, é claro, está em sua devida posição de desconhecimento do mundo, mas Samuel é do tipo que ouve falar em ditadura e responde apenas que “é preciso ter fé”. A cena em que tenta converter traficantes enquanto estes embalam seus papelotes de cocaína é hilária. Já Gladys, militante que vive escondida devido à perseguição política, aceita em sua casa a presença de um desconhecido que tira fotos de seu cotidiano, inclusive de encontros secretos.

Se os personagens são inocentes demais, o filme certamente não o é. Existe um peso importante ao se colocar um norte-americano como mocinho gentil e solidário, tentando ajudar a todo custo os chilenos, especialmente quando se leva em consideração a herança dos Estados Unidos no financiamento de ditaduras e golpes de Estado no sul do continente. As metáforas nem são muito sutis: o imigrante é tratado literalmente como “tio Sammy”, ou tio Sam, para sermos mais diretos, que pretende ficar no país para “ajudar a trazer o progresso”. Enquanto isso, ele compõe uma família patriarcal simbólica, servindo como marido de Gladys e pai adotivo do pequeno Vladi. Este personagem nunca é criticado em sua posição, pelo contrário: através dos outros membros da família, sugere-se que nem todo americano é malvado. É preciso analisar caso a caso.

Esteticamente, Justiniano busca representar a atmosfera hostil através de imagens dessaturadas e contrastadas. Os céus são transformados em grandes borrões brancos, enquanto a câmera treme nervosamente de rosto a rosto, imprimindo uma sensação de urgência. Os figurinos e cenários são bem construídos pela direção de arte, que faz questão de explorar ao máximo a doçura de Elías Collado, ator mirim talentoso, capaz de sustentar longas cenas de diálogo em planos fixos. Durante mais da metade da narrativa, Cabras de Merda equilibra a tensão política com os pequenos dramas pessoais e o romance prometido entre Gladys e Samuel. A ditadura é insinuada pelos diálogos e programas de TV, fomentando um imaginário de opressão que não se concretiza.

O terço final, no entanto, decide explicitar a violência do governo, optando pelo martírio como forma de humanizar as personagens, desumanizar os vilões e martelar a ideia – já suficientemente clara – de que a ditadura aplicou uma violência intolerável. Surgem então fortes cenas de tortura, com som ampliado para aumentar o pânico, além de chantagens emocionais envolvendo crianças e histórias de amor abortadas pela política. O melodrama torna-se a saída ideal para sensibilizar o público via estética do choque: afinal, quem não se incomoda com os maus tratos infligidos a uma criancinha inocente? Cabras de Merda possui uma vocação humanitária evidente, mas não convida o público a refletir nem estabelecer uma ponte com os tempos atuais, preferindo um caminho maniqueísta e de poucas nuances.

Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.