Quem é mais sentimental que eu?
por João Vítor FigueiraHá um certo misticismo na noção de nostalgia. Sentir saudade é sentir uma estranha presença de uma ausência, uma sensação que confunde os antagonismos de felicidade e tristeza. Sentir a falta de uma pessoa, emoção ou experiência faz parte da experiência humana e essa angústia é explorada pelo anime Shiki Oriori: O Sabor da Juventude. O longa-metragem sino japonês é estruturado como uma antologia guiada por um mesmo eixo temático e com três histórias diferentes ambientadas em cidades distintas da China (escolha que certamente é um aceno ao segundo maior mercado de cinema do mundo).
O filme, distribuído pela Netflix, tem sido vendido com uma ênfase no fato de que a produção foi desenvolvida pelo estúdio CoMix Wave Films, casa do diretor e roteirista japonês Makoto Shinkai, do fenomenal Your Name. Entretanto, onde Your Name, o anime de maior sucesso comercial de todos os tempos, acerta, Shiki Oriori erra. O tríptico filme episódico carece de um desenvolvimento profundo de seus personagens, derrapa em clichês e parece parodiar de forma involuntária o sentimentalismo melodramático mas ao mesmo tempo honesto e eventualmente tocante dos melhores trabalhos de Shinkai.
A impressão que dá é que a obra tem ciência de que seu público alvo é composto por adolescentes, apesar da natureza adulta do tipo de reflexões que propõe, e por isso subestima o espectador regurgitando fórmulas ou se limitando a narrativas rasas. Erro crasso.
O segmento "O Macarrão de Arroz", dirigido por Jiaoshou Yi Xiaoxing, abre o filme. O episódio que mais se relaciona com o subtítulo de Shiki Oriori no Brasil acompanha a vida de Xiao Ming, um homem que foi morar em Pequim, mas vive imerso em suas lembranças de sua infância em sua cidade natal. Ao revisitar o passado, percebemos que o que a sétima arte é para o menino de Cinema Paradiso, o macarrão bifum é para o rapaz. Apesar das belas e detalhadas tomadas de pratos que certamente se tornarão gifs em páginas do Tumblr e podem referenciar a obsessão de Hayao Miyazaki em transformar culinária em animação, falta substância no caldo deste lámen.
Não há nenhum espaço para a subjetividade na morosa narração do protagonista com linhas que denunciam a impessoalidade e frieza da vida em uma metrópole de forma óbvia. O roteiro prefere deixar o personagem principal narrar sua própria vida dizendo algo como “estou triste” do que criar situações que mostrem tal tristeza. Quase não há diálogos aqui. Todas as impressões de mundo do rapaz chegam mastigadas. Nos flashbacks, a música incessante torna ainda mais frágil a tentativa do filme de romantizar os olhares que o menino lança para uma garota na rua. As obviedades também saltam narrativamente. Basta o rapaz dizer "Onde foram parar as lembranças?" para o filme voltar alguns anos no tempo. Por fim, pouco ou quase nada é dito sobre a personalidade de Xiao Ming para além de seus gostos culinários.
Yoshitaka Takeuchi, diretor de 3DCG de diversos filmes de Makoto Shinkai, dirige "Nosso Pequeno Desfile de Moda". Tirando uma cena que envolve chuva, o visual deste trecho de Shiki Oriori é tão desinspirado que mal parece se tratar de uma produção com o selo CoMix Wave Films, que já entregou produções com níveis impressionantes de detalhismo visual como O Jardim das Palavras. Ao menos os personagens conversam mais entre si, o que já representa um alívio em relação a "O Macarrão de Arroz".
Na trama, ambientada em Guangzhou, duas irmãs, Yi Lin e Lulu, lidam com a falta dos pais enquanto tentam se conectar afetivamente uma com a outra. Yi, a mais velha, é modelo e o filme parece resumir a vida das profissionais da passarela a obsessão pela beleza e disputa com outras mulheres. Lulu, a mais nova, é uma aspirante a estilista que não sabe se terá uma chance para mostrar seu talento. A história é rasa e sem complexidade. As viradas de roteiro são previsíveis e dada a sua inofensividade, "Pequeno Desfile de Moda" consegue ser mais fraco do que o pretensioso segmento que o precedeu. Para não dizer que tudo está perdido, este é o segmento que tem a trilha sonora mais sofisticada.
É só no terço final de Shiki Oriori que o longa-metragem mostra seu real potencial. A história de "Amor em Xangai", dirigido por Li Haoling, evoca a incomunicabilidade entre pessoas que se amam, como Your Name, mas sem o componente transcendental/sobrenatural. É a única parte realmente boa, consistente, dramaticamente convincente e narrativamente robusta do filme. Por ficar no desfecho, “Amor em Xangai” quase deixa a sensação de que o segmento final redime os demais erros do filme.
No enredo, Li Mo, já um arquiteto adulto, encontra uma fita cassete com a voz de Xiao Yu, a menina que foi sua paixão oculta na infância e mudou para sempre a trajetória de sua vida. Encontrar aquele objeto o faz propor para si mesmo uma arqueologia de seu afeto. O roteiro se preocupa em dosar drama e comédia para fugir do registrcoo do sentimentalismo monotemático e constrói uma história que complexifica seus personagens.
Aqui há motivações, pulsões, uma melancolia que se faz sentir para além do que é verbalizado. Quando "Amor em Xangai" foca na infância dos protagonistas, eles jamais precisam declarar o que sentem, mas situações como o colo que Li Mo oferece a Xiao Yu e as conversas resignadas que os dois tem densificam esta relação. Além disso, este é o segmento com a angulação de enredo menos egocêntrica dos três. Para além da ligação romântica, este trecho de Shiki Oriori é o mais eficiente em fornecer comentários sobre a sociedade na qual a trama se desenvolve, contextualizando valores sociais pela forma como as famílias se comportam, abordando temas como abusos e conflitos de gerações, e traçando um paralelo das histórias das pessoas com o desenvolvimento urbano de Xangai. Mesmo sem um desfecho catártico, o episódio consegue guardar surpresas até o final e definitivamente se firma como uma deliciosa recompensa.