Fenômeno popular
por Francisco RussoRico como é, o cinema é capaz não só de emocionar a partir de histórias alheias como também narrar suas próprias desventuras, neste fascínio que é ir à sala escura ou trabalhar na área. Meu Nome é Dolemite é o mais recente caso do tipo, encampando de forma apaixonada não só os apuros na produção de um longa-metragem na base da raça mas, também, a necessária representatividade nas telonas. Uma questão que perpetua nos dias atuais, vide o recente fenômeno cultural que se tornou o lançamento de Pantera Negra, em 2018, e os relatórios que, ano após ano, ainda ressaltam a presença diminuta de minorias em Hollywood. Como se pode ver, ainda há um longo caminho pela frente.
Caminho este percorrido por Rudy Ray Moore no início dos anos 1970, quando ouviu a voz das ruas para renovar seu repertório como comediante, em boates e casas de show. Ao adotar piadas sujas e um linguajar repleto de palavrões, mas típico da comunidade negra, Rudy não só alcançou o estrelato como criou um estilo próprio. Gravou discos com músicas cômicas, nos quais explorava os assuntos favoritos do povão, que gargalhava sem parar. Tamanho sucesso fez com que decidisse alçar voos mais altos e ingressar no cinema - mas, é claro, cinema do jeito que ele acredita, ou seja, com muitos peitos, muita diversão e muito kung fu. Bem-vindo à era da blacksploitation!
O grande mérito do diretor Craig Brewer foi conseguir captar a vibração da época em Meu Nome é Dolemite, de forma a dar-lhe o groove típico do movimento cultural negro, inclusive na vibrante (e ótima) trilha sonora e em uma edição bem ágil. Para tanto, conta com o imenso auxílio de seu elenco, de uma coesão e desenvoltura deliciosas, em especial Eddie Murphy. Afastado das telonas há três anos, o eterno Axel Foley retorna em grande forma, com seu clássico sorriso cativante em um personagem que aparenta ter nascido para ele: Rudy é um típico showman, exibicionista e ao mesmo tempo canastrão o suficiente para lutar pelo que deseja. Basta reparar na saborosa sequência de abertura do filme, na qual tenta convencer um apresentador de programa de rádio a tocar um de seus discos obscuros. Hilário!
Entretanto, mais do que apenas contar piadas sujas, o grande pulo do gato de Ruby foi criar para si uma persona extravagante e facilmente reconhecível junto ao público. Toda esta jornada é apresentada ao longo do primeiro ato do longa-metragem, assim como a formação da trupe - ou gangue - que irá seguir Dolemite em seus próximos passos, onde pode-se destacar de Keegan-Michael Key com seu timbre de voz mais sério a Craig Robinson, de imenso carisma como o compositor da trilha sonora dos shows e do filme dentro do filme, de Da'Vine Joy Randolph brilhando ao cantar e se afirmar como mulher até um Wesley Snipes irreconhecível, repleto de olhares e trejeitos afetados que trazem ao personagem o espanto e desprezo diante do jeitão mambembe da trupe. Todos estão ótimos, a partir de personalidades completamente distintas que são unidas pelo desejo em fazer algo que atinja o coração do seu povo. Simples assim.
Meu Nome é Dolemite é um filme apaixonante pela entrega absoluta de seus personagens, em um cenário onde ninguém mais os valorizaria. Repleto de diálogos inspirados e saborosíssimos, além de um punhado de grandes atuações, trata-se de um filme que faz rir muito nesta ânsia em fazer com que as coisas aconteçam sem que haja o devido preparo para tanto. Esta é uma história de coração imenso, seja na construção da tão badalada trupe de cinema ou mesmo no respeito ao seu público, por mais que tudo tenha iniciado na eterna busca - e necessidade - de dinheiro. Faz parte.
Extremamente bem dirigido e com uma ambientação que flerta com o kitsch no figurino de Ruby Ray Moore, mas sem jamais deixar de lado a estética própria da comunidade negra nos anos 70, Meu Nome é Dolemite brilha intensamente como reflexo da necessidade de seu povo em se ver nas histórias e o quanto isto muitas vezes é negligenciado por quem está no comando, seja no governo ou nas grandes empresas. Assim nascem os fenômenos populares, contra tudo e contra todos.
Aos apressados assim que surgem os créditos finais, fica a dica: ao término do filme há um punhado de breves cenas de Dolemite, o filme de 1975 que é recriado neste longa-metragem. Assim como aconteceu em Artista do Desastre, é muito interessante comparar criador e criatura, não só pela possibilidade de confirmar a veracidade do exibido mas, também, para notar o quanto se buscou ser fiel ao original.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.