Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Raiva

Vidas secas

por Bruno Carmelo

“Nas terras mortas onde não há pão, os pobres nascem pobres e os ricos nascem ricos”. A frase entoada pelo narrador resume bem a proposta deste drama. A trama gira em torno de uma família patriarcal de camponeses, desesperados pela falta de trabalho e de alimentos. Para complicar a situação, o filho pequeno sofre de algum tipo de autismo, e as autoridades estão de olho na vocação contestadora de Palma (Hugo Bentes), homem que pega sua espingarda e atravessa as planícies secas em busca de alguma forma de justiça social.

Raiva trabalha com códigos do cinema clássico: pela composição em preto e branco austero, com planos fixos e simétricos, além da ausência de trilha sonora durante a maior parte da narrativa, não deixa de evocar o neorrealismo, com sua trama passada no século 1950 e a figura das mulheres paupérrimas, enroladas em trapos pretos, ostentando uma expressão dolorosa em frente aos casebres. A figura de Palma, com chapéu e arma na mão, remete ao faroeste, com direito ao esperado duelo ao pôr do sol com Reis (Diogo Dória), homem endinheirado e vilão desta luta de classes. O diretor Sérgio Tréfaut retrata a parte central do século XX com ferramentas de linguagem igualmente antigas, que soam voluntariamente deslocadas nos tempos de hoje.

Um elemento interessante na narrativa se encontra na inversão de sua estrutura: o clímax e a conclusão são apresentados no início, para só então conhecermos a trajetória que culmina na tragédia final. Livre da expectativa sobre o desfecho, o diretor pode se focar nos personagens, na rígida composição dos planos e no ritmo vagaroso. Existe um componente teatral nos grandes espaços ornados com pouquíssimos objetos ou móveis, mesmo para um grupo miserável como este. Trabalha-se com a metonímia: pequenos tocos de madeira representam cadeiras, uma única frigideira faz alusão a toda a culinária familiar. Deste modo, Tréfaut chama ainda mais atenção às expressões dolorosas, aos corpos rígidos, como resistentes, embrutecidos.

Os atores se acomodam como podem à representação antinaturalista. Hugo Bentes cria um sujeito taciturno e orgulhoso, espécie de herói matuto de tempos antigos. A expressiva Leonor Silveira tem a câmera colada em seu rosto na maior parte do tempo, mas consegue oferecer pouca variação a partir de uma personagem tão simples. Mesmo o filho autista representa pouco mais do que uma dificuldade suplementar para a família. Estas pessoas não adquirem uma identidade própria, representando o arquétipo do grupo de miseráveis contra as oligarquias no poder. Cada personagem ilustra muito mais do que uma subjetividade: ele encarna uma classe social, um gênero e uma etnia específicos.

Raiva pode parecer um tanto arrastado em função de seu ritmo lânguido, dos planos filmados sempre à altura dos olhos, da impressão de um tempo cíclico, no qual as ações se desenvolvem sem realmente se modificar. No entanto, o diretor consegue embutir na obra um lirismo comedido, jamais melodramático, num equilíbrio de difícil confecção. Além disso, a coprodução entre Portugal, Brasil e França ostenta uma identidade inequivocamente portuguesa em seu agenciamento de imagens e sua poesia austera no retrato da história nacional.

Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.