Ouvindo o silêncio
por Taiani MendesFabiana é uma caminhoneira com anos de estrada fazendo as últimas viagens antes da aposentadoria. Coleciona romances nas cidades que costuma frequentar, compartilha os “ca(u)sos” com os curiosos amigos de profissão, divide residência fixa em Goiás com a companheira e tem um filho, de outro relacionamento, com quem não consegue passar datas especiais. Ah, Fabiana também é transexual.
Diretora estreante, Brunna Laboissière entrega uma obra diferenciada dentro do efervescente cinema LGBTQI por se distanciar da costumaz narrativa focada no preconceito e/ou o processo de descoberta e afirmação. Cruzando o Brasil no banco do carona do caminhão de Fabiana, Brunna constrói um retrato destinado a ir além de questões de gênero já bastante exploradas, sem tratar impressões negativas de outras pessoas sobre sua personagem como o principal, apresentando um perfil muito mais sentimental do que identitário.
Filmando com intimidade que não se consegue do dia para a noite, no nível de entender tempos e notar hesitações, a cineasta sabe que os longos silêncios de Fabiana possuem tanto conteúdo quanto suas conversas. A limitação do espaço não oferece muitas possibilidades criativas à realizadora, que reveza imagens da interminável estrada adiante com registros da condutora vista de lado. A diversidade de cenários do road movie e as decifráveis expressões da protagonista, no entanto, afastam o esgotamento da repetição e Brunna tem a oportunidade de explorar com talento outros planos nas paradas e a partir da proveitosa entrada de uma terceira pessoa na cabine: a desestabilizadora Priscila.
Fabiana pré-aparição de Priscila adora lembrar dos contatinhos e falar do amor de cada porto, como uma marinheira que tem como arma de sedução o acanhamento. Quando começa a dividir a cena e o pequeno espaço do caminhão com a namorada (e suas indiretas musicais), porém, fica pianinha, retraída à sombra de sua personalidade forte e claramente desconfortável por não ter controle total sobre a parceira e a relação, da mesma maneira que é capaz de direcionar seu pesado veículo.
Priscila substitui Brunna, os colegas caminhoneiros e as amigas íntimas como interlocutora de Fabiana, expondo através das frequentes desavenças uma vulnerabilidade que a motorista escondia bem enquanto senhora suprema do discurso, contando com a diretora como levantadora de pautas. É quase um confronto de como a caminhoneira se vê contra quem realmente é, um jogo das sete diferenças entre a representação autobiográfica e a que é fruto de observação - o que remete de certo modo à transgeneridade em estágio inicial.
Jogando nas onze assinando direção, roteiro, som e fotografia, Laboissière se empenha na condução das entrevistas disfarçadas de conversas, naturalidade que desaparece nos teatrinhos envolvendo mais pessoas. Cativante já à primeira vista, o que conta muitos pontos para o engajamento do espectador no documentário, Fabiana admira o voo dos aviões e teme a profundidade das águas, presa ao chão das inseguranças de amor e futuro que nada têm de incomum. Uma grande personagem.
Filme visto no 7º Olhar de Cinema, em junho de 2018.