O bom policial amigo
por Bruno CarmeloPara quem acredita já ter visto todas as versões possíveis da rotina policial em séries de televisão e filmes de suspense, Oh Mercy! propõe um olhar radicalmente diferente dos retratos médios da profissão. Saem de cena o policial extremamente competente, que desvenda casos ao primeiro olhar, assim como aquele nervoso, bruto, porém dotado de um bom coração. Desaparecem os policiais corruptos, os apáticos, os traumatizados. Neste filme, os representantes da lei na comuna mais pobre, e uma das mais violentas da França, constituem grandes figuras paternas. O principal deles é Daoud (Roschdy Zem), sujeito que jamais se irrita, passando o dia inteiro conversando placidamente com traficantes e assassinos. Quando um funcionário infringe as leis (por trabalhar voluntariamente, além das horas estabelecidas), ele o repreende com um sorriso e termina dizendo: “Bom trabalho”.
Talvez seja louvável a intenção de resgatar à profissão policial a sua humanidade para além do fetiche do perigo e da ação. No entanto, o diretor Arnaud Desplechin oferece uma inesperada mistura de história criminal com conto de Natal: enquanto os homens e mulheres desvendam crimes, uma trilha sonora de orquestra torna as cenas melódicas; movimentos em gruas filmam os paralelepípedos como se fossem um cenário da Disney; amplos zooms no rosto dos personagens reforçam o caráter heroico. Para cada conversa com um suspeito, a montagem oferece a imagem da decoração natalina pela cidade. O filme se constrói numa espécie de trégua simbólica entre o crime e o espírito de festas de fim de ano, como nas famílias que se abraçam após brigarem durante todos os meses anteriores.
O olhar carinhoso é curiosamente utilizado para retratar a história real de duas namoradas, Claude (Léa Seydoux) e Marie (Sara Forestier), acusadas de assassinarem a vizinha idosa após um assalto. A narrativa soa indecisa quanto ao foco: embora a primeira metade transite entre este caso e meia dúzia de outras histórias, a segunda parte se concentra apenas no desfecho do assassinato. Em outras palavras, enquanto a parte inicial privilegia o trabalho dos policiais, a parte final se volta à vida das duas suspeitas. Diante de tantas indefinições de foco e de tom, os atores ficam deslocados: Sara Forestier arregala os olhos e imprime uma incompreensão à beira da deficiência intelectual, enquanto os sorrisos delicados de Roschdy Zem beiram a comédia em tantas situações tensas. Quando um policial afirma às rés que “você não vai mais ficar com o seu filho, a questão é saber se vai revê-lo na primeira comunhão ou na formatura da faculdade”, o público dentro da sala de cinema caiu na gargalhada.
O diretor tenta inserir seu espectador numa atmosfera ideal, ao invés de verossímil, onde todos podem se entender, mesmo sem se gostar. (Seria interessante, aliás, colocar os gentis policiais de Roubaix na comunidade violentíssima do filme Les Misérables, para vê-los aplicar a sua política dos afetos às sangrentas brigas entre gangues). Enquanto investigam, os personagens lançam reflexões amplas sobre a natureza humana e o valor da comunidade. “Acho que a vida deveria ser encantada, mas não é”, afirma Daoud, que se dirige mais tarde às acusadas: “Nós já sabemos o que vocês fizeram. Agora, o que interessa é a verdade”. Enquanto isso, o novato Louis (Antoine Reinartz), outro policial de imperturbável amabilidade, escreve cartas ao pai lamentando a pobreza da bela cidade francesa.
Diante de um caso tão propício aos prazeres do cinema policial e de suspense, Desplechin prefere se calcar no terreno do melodrama. A história de Claude e Maria lhe interessa mais pelas questões psicológicas suscitadas (a maternidade, a homossexualidade escondida) do que pela suspeita da autoria dos casos. É curioso que tantos filmes franceses em competição no 72º festival de Cannes abordem a integração da comunidade de origem magrebina à sociedade local. Les Misérables e Young Ahmed preferem se focar nas dificuldades de inserção, assim como na ausência de soluções eficazes para proporcionar à comunidade árabe o mesmo nível de qualidade dos demais. Oh Mercy! prefere o olhar conciliatório, a ideia de que todos formamos uma família, quase literalmente – vide o caso de Daoud com o sobrinho ou com a amiga que fugiu de casa. O discurso deste filme é calcado no amor ao invés da sociopolítica, razão pela qual soa tão inocente.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.