O buraco é mais embaixo
por Sarah LyraEm seus momentos iniciais, Devorar imediatamente nos apresenta ao tom a ser empregado durante toda a narrativa, com um estranho e melancólico estudo de personagem sobre uma mulher grávida, Hunter (Haley Bennett), cujo crescente desejo de engolir objetos se torna um sintoma para uma profunda condição psicológica. No que muito lembra a interação proposta por Yórgos Lánthimos em O Sacrifício do Cervo Sagrado, Hunter e seu marido Richie (Austin Stowell) moram numa luxuosa casa de vidro, se portam como o casal perfeito e ao mesmo tempo mal sustentam um diálogo dentro dos padrões esperados para duas pessoas com afetividade uma pela outra. Com essa pegada, o diretor Carlo Mirabella-Davis cria um contraste ao questionar a frieza da relação e simultaneamente naturalizar esse comportamento. Como se a nós fosse permitido identificar os problemas, mas para os personagens a situação soasse quase normal.
Com um comportamento que lembra o de vícios, de maneira geral, Hunter desenvolve um senso de prazer em colocar objetos na boca e lentamente engolí-los. À medida que a prática se torna um hábito, a protagonista se desafia na escolha das peças. Inicialmente, uma bola de gude, redonda e pequena; em seguida, uma tachinha, ainda pequena, mas pontiaguda; dias depois, pilhas e objetos longos e afiados. É interessante observar a evolução do distúrbio da mulher, principalmente por conta da visível satisfação em seu rosto após “superar” mais um obstáculo. Paralelamente, acompanhamos a tóxica dinâmica familiar, que consiste no distanciamento emocional do marido controlado pelos pais ricos. Seja na falta de liberdade para decidir a decoração da casa (comprada pelos sogros) ou nas frequentes interferências de Katherine (Elizabeth Marvel), que impõe regras de conduta e tenta controlar até mesmo o corte de cabelo usado por Hunter, o alto nível de estresse vivido pela protagonista se torna palpável.
Talvez por se tratar de uma condição tão única e tão bem retratada nos dois primeiros atos, é uma decepção notar como o filme recorre a soluções fáceis em seu desfecho. Na tentativa de explicar o distúrbio da protagonista, o roteiro insere um trauma do passado como ponto de virada, e, a partir desse momento, a jornada de Hunter passa a ser de superação, como se só dependesse da boa vontade dela se livrar do próprio problema. Essa postura simplista acaba desrespeitando não apenas a personagem, mas toda a complexa construção do longa, até então, no sentido de desenvolver aquele universo, isso sem falar no desserviço de propagar uma mensagem de que transtornos mentais são tão facilmente superados. O aspecto vilanesco usado para caracterizar a família de Richie também não colabora para o enriquecimento da trama, principalmente porque as ações soam excessivamente cruéis e caricatas — afinal, por que Richie é tão indiferente à esposa? Por que Katherine se sente tão ameaçada a ponto de precisar reafirmar sua autoridade sobre Hunter sempre que pode?
Com uma bela fotografia dessaturada e uma poderosa atuação de Bennett, certamente os destaques deste projeto, Devorar demonstra um potencial que, durante a execução, se perde. O que deveria ser um dos grandes momentos da história, envolvendo um reencontro de Hunter com alguém do passado, se torna oportunista e apressado pela falta de desenvolvimento na relação entre as duas pessoas envolvidas, além de ingênuo em sua premissa de acreditar que uma única conversa pode reparar o mal causado ao longo de décadas. Cru e autoral em sua essência, este filme se torna problemático e esquecível por sua dificuldade em se manter transgressor e coeso diante de uma temática tão complexa.
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.