Um alegre mundo de excessos
por Bruno CarmeloEste projeto nasce da nostalgia daqueles bons tempos quando as pessoas se amavam sem regras, faziam festas pelas ruas da cidade, os jovens viviam como se não houvesse amanhã, e o cinema nacional produzia seus melhores filmes. Talvez a sociedade italiana jamais tenha existido deste modo tão libertário e libertino, porém o diretor Paolo Virzì mergulha no sonho de juventude sem regras. Trata-se de um imaginário tão inconsequente que, mesmo quando um carro cai dentro de um rio, levando à morte do motorista, ninguém presta atenção, porque todos estão assistindo ao jogo da Itália na Copa do Mundo. Simbolicamente, trata-se de uma escolha de vida: ao invés de enxergar os problemas, as pessoas preferem a ilusão de uma Itália vitoriosa e unida.
Para tal, o filme elege como protagonistas três tipos muito precisos: o nerd Antonino (Mauro Lamantia), garoto de óculos, com roupas sociais, virgem e disposto a citar filósofos em qualquer situação; o mulherengo Luciano (Giovanni Toscano), visando qualquer mulher à sua frente; e a angustiada Eugenia (Irene Vetere), que se veste de preto, toma todos os tipos de remédios controlados e demonstra propensão à paranoia. Resumidos a estas características essenciais, eles jamais adquirem um aprofundamento psicológico: o nerd se mostra nerd a cada cena, o conquistador mira um novo alvo a cada oportunidade. Isso ocorre primeiro porque o roteiro não possui a pretensão de humanizá-los, apenas confrontá-los em suas óbvias oposições (virgem versus sexualmente ativo, garoto extrovertido versus garota introspectiva etc.), e segundo, porque os personagens não constituem a origem dos conflitos. São as circunstâncias que fazem deles o que bem quiserem, levando-os de um lado ao outro, de um diretor a um produtor, de uma rua a uma delegacia.
Deste modo, o roteiro composto de flashbacks (após o assassinato inicial, volta-se no tempo para descrever como aconteceu) se envereda por caminhos sinuosos na intenção de demonstrar a louca vida dos três amigos e concorrentes ao mesmo prêmio de roteiro. Noite Mágica supõe um universo em que não apenas os filmes são feitos na base da malandragem (os roteiros são escritos por pessoas não creditadas, financiados após chantagem, estrelados por atores que ninguém escolheu), mas também o sexo de modo abrupto e nem sempre voluntário. Assim, uma grande celebridade italiana decide mostrar a vagina para Luciano durante uma festa para agradá-lo, e o aclamado ator Jean-Claude Bernard (Jalil Lespert) estupra Eugenia porque acredita ter o poder de fazê-lo. Estas cenas são tratadas com a mesma aura descomplexada, o que produz um incômodo significativo. A decisão de representar o mundo do cinema pela aura circense e caótica pode ser defensável, mas o retrato da morte e do abuso sexual de maneira igualmente leve soa muito menos apropriado.
Virzì acredita que a simples desconstrução de códigos (sociais e cinematográficos) cumpre o papel cinéfilo desta aventura metalinguística. Ao fazer referência a Ettore Scola, Federico Fellini, Marcello Mastroianni e Roberto Rossellini, entre outros, o cineasta oferece sua versão de uma homenagem, ainda que o filme deixe em segundo plano tanto as cenas com pessoas fazendo cinema quanto os momentos em que os personagens assistem a filmes. Mesmo os três protagonistas, supostos prodígios do roteiro, são pouco desenvolvidos em seu talento literário ou visão de cinema. Em outras palavras, este mundo da arte é menos composto por obras do que por pessoas excessivas, alcoolizadas, intempestivas, inconsistentes, gritando “Adoro o seu roteiro, trate de melhorá-lo” ou então “Odeio o seu roteiro, vou filmá-lo”. Trata-se de um universo de festas e jantares, encontros e salas de redação, na qual uma garota solitária imediatamente convida dois homens que sequer conhece para dormirem em sua casa enquanto outro jovem decide revelar, aleatoriamente, o fato de possuir um filho numa cidade distante. As motivações se perdem na velocidade vertiginosa das ações e dos deslocamentos.
É possível que Noite Mágica busque emular o estilo descompromissado das comédias all’italiana, no entanto, os diretores destas obras populares são os menos citados, e o teor social e político inerente ao trabalho de Mario Monicelli, Dino Risi e afins está muito distante da proposta de Virzì. O cineasta percebe as qualidades e defeitos daqueles tempos, mas não está disposto a criticar qualquer vertente nem traçar um caminho pessoal. O diretor se torna refém de seu material, seus diálogos e suas caricaturas, num mundo assumidamente condescendente. Não por acaso, o único personagem a procurar uma narrativa plausível dentro da trama é o delegado que investiga o crime, ao invés dos roteiristas ou produtores em cena. Virzì tem muito a mostrar e muitas citações a fazer, porém pouco a dizer sobre este período além da saudação generosa, incapaz de estabelecer uma ponte com os nossos tempos e a nova forma de produzir cinema. A nostalgia se torna o ponto de partida, e também de chegada, desta ampla comédia de afagos.