Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Dor e Glória

Confessionário

por Bruno Carmelo

“Este é o meu projeto mais pessoal”, havia dito Pedro Almodóvar quando anunciou as filmagens de Dor e Glória, e não é difícil descobrir o porquê. O drama constitui uma evidente autobiografia do diretor, com Antonio Banderas interpretando um cineasta em fim de carreira, que por acaso também é homossexual, fez parte de uma banda punk paródica, dirigiu comédias populares e femininas no início da carreira. O protagonista, Salvador, constitui um alter-ego de seu criador, portando inclusive o mesmo corte de cabelo. Próximo dos 70 anos de idade, Almodóvar segue o caminho de diversos artistas confrontados à sua finitude, transformando sua própria existência, de certo modo, em obra de arte.

O filme transparece uma existe uma evidente tentativa de controle do discurso. Esta seria a versão oficial, as memórias afetivas segundo aquele que as viveu, incluindo várias referências aos fatos de modo que a ficção se assemelhe à experiência de folhear as páginas de um diário. O resultado poderia ser uma obra vaidosa, uma recapitulação dos dias de glória, como sugere o título, porém o roteiro concentra-se muito mais no que vem após o sucesso: depois de ter filmado seus projetos mais bem-sucedidos, o que resta a um diretor incapaz de reproduzir este êxito? Como comparar-se a si mesmo? Quando se atinge o ápice, a consequência lógica seria inevitavelmente a queda? O filme concentra-se nesta área cinzenta, melancólica, voltada constantemente ao passado pela dificuldade de enfrentar o presente.

O retorno às origens é permeado por flashbacks, ainda que dispostos em temporalidade não linear. Dor e Glória retorna à infância para descobrir a relação com a mãe e o pai, a paixão pelas artes e a descoberta da homossexualidade, saltando para os problemas de saúde futuros, e eventualmente mergulhando na infância mais uma vez. Almodóvar constrói o seu equivalente de “Pequenas Memórias” de José Saramago, no qual ele elenca menos as transformações marcantes de sua vida do que as lembranças que permaneceram na memória afetiva: o cheiro de urina e jasmim no cinema de antigamente, a primeira imagem do corpo nu de um homem, o gosto do pão com chocolate oferecido pela mãe. Depois de ter conquistado todas as recompensas da fama, só lhe interessa a banalidade, o cotidiano – as pequenas coisas.

Por isso, o drama se revela minimalista na construção imagética. As cenas continuam multicoloridas, repletas de texturas e estampas, mas há pouco som externo, pouco caos, pouca dinâmica de grupo. As cenas desenvolvem-se em conversas truncadas, cotidianas, entre duplas de amigos ou ex-amantes dentro de um apartamento ou na clínica médica. Neste filme, toda forma de alegria manifesta um fundo de tristeza, de modo que nenhuma cena abraça por completo a felicidade nem o desespero. A narrativa navega pela zona ambígua na qual o orgulho (o filme fictício Sabor, filmado por Salvador trinta e dois anos anos antes) se torna vergonha (pelas brigas com o ator principal), em que a moralidade (a aversão do diretor por drogas) se transforma em curiosidade (ele quer experimentar a heroína porque, afinal, o que lhe resta a perder nesta fase da vida?).

Dor e Glória se mostra tão simples na estética (vide as animações esquemáticas de corpos doentes) quanto ambicioso no discurso. Almodóvar questiona a perenidade do cinema e as transformações na percepção de gosto, ao se questionar se a atuação do ator lhe parece melhor porque o filme mudou com o tempo, ou a sociedade o transformou. De qualquer modo, o tempo age de maneira impiedosa tanto para o criador quanto para a criatura. “Sem filmar, minha vida não faria sentido”, afirma o protagonista, verbalizando um raciocínio que corresponderia àquele do diretor. Filmar corresponde a um impulso, uma maneira de se provar capaz, de interferir na realidade, capturá-la, transformá-la. Fazer cinema equivale a um risco, mas também a uma manifestação de poder. Quando Salvador se vê incapaz de criar, não lhe resta mais nada a fazer em seus longos dias.

Além disso, o drama apresenta uma das mais belas representações da homossexualidade no cinema recente. A atração do protagonista por homens é trabalhada enquanto elemento importantíssimo de sua identidade, ainda que não seja um motor narrativo. Ao invés de mostrar um beijinho discreto entre Salvador e o antigo namorado, Federico (Leonardo Sbaraglia), como tantos filmes fariam, estimando terem cumprido seu papel de representatividade, Almodóvar fornece um beijo real, apaixonado, em plano próximo, sem vergonha nem desculpas. A sugestão do desejo do garoto pelo pintor adulto, com a belíssima montagem na cena da febre, nos lembra de que a sexualidade existe desde a pequena infância, manifestando-se em toda a naturalidade.

Com Dor e Glória, um Almodóvar contido explora seus traços autorais sem repetição, adaptando-os à necessidade da trama diminuta. Enquanto evocação de uma vida crepuscular, revela-se impiedoso, porém terno. As cenas finais possuem forte teor sugestivo, deixando em aberto o futuro da pessoa e do artista, enquanto lembram que apenas as obras são eternas. O filme não deixa de constituir uma homenagem à ontologia fotográfica do cinema, ao aspecto embalsamador de toda imagem, que preserva uma representação para muito além da existência de seu referente. Por isso as cartas, os quadros, as peças de teatro, as canções, os textos, e os filmes se tornam tão importantes neste projeto: a arte constitui uma bela tentativa utópica de resistir à passagem do tempo, ao mesmo tempo em que se celebra o tempo passado.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.