Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Rafiki

O inaceitável amor romântico

por Bruno Carmelo

Kena (Samantha Mugatsia) olha para Ziki (Sheila Munyiva). Ziki olha para Kena. Elas se encontram mais algumas vezes pelas ruas, quando os olhares se repetem. Desde as primeiras cenas, é fácil compreender que as garotas estão interessadas uma na outra. No entanto, alguns obstáculos impedem a concretização do romance: primeiro, nenhuma das duas é assumidamente lésbica, porque vivem no Quênia, onde a homossexualidade é tratada como infração grave pelas autoridades religiosas. Segundo, porque os pais de ambas concorrem a prefeito local como oponentes, de modo que a união entre as filhas de inimigos prejudicaria a credibilidade da democracia local. O filme sugere uma espécie de Romeu e Julieta gay e africano, mas felizmente não força sua metáfora a este ponto.

Rafiki é um filme singelo, até demais. Os encontros são previsíveis, assim como as consequências do relacionamento. Sabe-se que eventualmente a sociedade acertará contas com o idílio amoroso, através da figura vilânica de uma mulher fofoqueira, sentada sempre na mesma cadeira, em frente à mesma barraca de alimentos, intrometendo-se na vida dos outros cena após cena. Kena e Ziki possuem a cidade inteira à disposição, mas parecem condenadas a repetir a caminhada por ruas onde serão percebidas, encontrando-se em segredo repetidas vezes numa van onde, em algum momento, serão descobertas. Existe um senso trágico neste amor condenado ao fracasso, assim como uma irônica impressão de claustrofobia na cidade filmada em externas, de dia, em planos abertos.

A diretora Wanuri Kahiu demonstra talento na representação dos espaços urbanos. O drama se desenvolve numa cidade viva em cores, texturas, cheiros, ritmos. A cineasta se foca na geografia das ruas, nas roupas penduradas no varal, nos doces vendidos em pequenos comércios, nas planícies onde se encontra o campo de futebol. Ninguém leva uma vida de luxo, tampouco enfrenta grandes dificuldades financeiras. É ótimo para os cinemas brasileiros receberem uma representação equilibrada da classe média queniana, ao invés do fetiche miserabilista que costuma ser colado ao continente. Existe evidente carinho por aquele espaço, filmado com proximidade e conhecimento.

Os encontros entre as protagonistas, apesar de algumas características acessórias dentro da narrativa – os diálogos “às escondidas” na frente de todos -, encarregam-se de debater uma ideia de identidade nacional projetada nas mulheres, além de transmitir o desejo de fuga do país. Kahiu não apresenta a eventual mudança à Europa como alternativa dos sonhos, tampouco condena aqueles que desejam fazê-lo. O olhar de empatia pelas garotas é desprovido de julgamentos de valor. Ao mesmo tempo, a câmera permanece próxima delas, acompanhando o desempenho natural, ainda que pouco técnico, das atrizes.

Rafiki se torna mais complexo quando discute o papel das mulheres naquela sociedade, ampliando o escopo para as mães de Kena e Ziki, duas donas de casa com visões diferentes sobre o mundo. O roteiro ameaça se tornar mais complexo com o subtexto da eleição política ou o paralelo entre as homossexualidades masculina e feminina, mas nenhum dos dois elementos se aprofunda. Afinal, estamos falando do amor romântico um tanto idealizado, incluindo a paixão à primeira vista, o desejo manifestado sob a chuva, embaixo de rosas, em meio a cupcakes decorativos. Isso pode parecer redutor, mas vale lembrar que o casto amor lésbico levou à proibição do filme em seu país – prova de que o brando imaginário deve ter soado muito mais grave em outras culturas. Esta representação doce e heroica pode ser anacrônica nos Estados Unidos, e mesmo no circuito de arte brasileiro. Mas é importante passar por esta espécie de cinema de conforto, previsível e otimista, dentro de uma nação opressora com suas minorias.

Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.