As imagens também mentem
por Bruno CarmeloO drama iraniano começa com uma sessão de análise da imagem. Um vídeo caseiro mostra uma garota desesperada, pedindo ajuda a uma atriz famosa, porque também sonha em ser atriz, mas sofre com a perseguição da família. O desespero da menina é intenso, a conclusão do vídeo sugere a possibilidade de uma tragédia. No entanto, a atriz Behnaz Jafari e o amigo Jafar Panahi, ambos interpretando a si mesmos, duvidam da veracidade da gravação. Seria apenas uma brincadeira? Algo encenado? Mas o vídeo não parece real? E se a menina realmente correr perigo?
Jafari e Panahi assistem às imagens uma, duas, três vezes. Eles levantam dúvidas sobre os objetos da cena, o tom da suposta atuação, o envio do material. As imagens, atualmente, servem como documento? Transmitem necessariamente uma verdade? Three Faces elabora esta pergunta do início ao fim, fornecendo complexas possibilidades de resposta. A dupla de artistas parte em busca da garota, e da verdade por trás do vídeo. Em determinado momento, um camponês mostra um pôster de cinema e diz “Isso sim é um homem viril, dá para ver”. Em outra cena, Panahi sugere abater um touro ferido no meio da estrada, até descobrir que o animal enfraquecido é um garanhão cujos cruzamentos garantem a renda de uma família local. As aparências não param de enganar os personagens e o espectador.
Em Taxi Teerã, o diretor também partia de imagens captadas de dentro de um caso, misturando drama e comédia para efetuar uma crônica social. No novo filme, o suspense policial se une à mistura: os indícios contraditórios solicitam ao espectador que participe do jogo e faça suas próprias apostas. Mesmo quando o enigma é desvendado, a narrativa encontra maneiras surpreendentes de prosseguir. À medida que a investigação se desenvolve, os dois habitantes da cidade encontram moradores do campo, a classe média se choca com as classes desfavorecidas, o liberalismo de costumes enfrenta a opressão religiosa. O roteiro consegue retratar de modo orgânico a diversidade do Irã contemporâneo através de meia dúzia de personagens.
Além da astúcia do roteiro, Panahi demonstra invejável controle estético, ainda mais afiado do que nos filmes precedentes. A primeira cena, por exemplo, constitui um plano-sequência com movimentação invisível e precisa entre os rostos, espaços internos e externos. A câmera parece estar ao mesmo tempo no banco de trás e na carroçaria, na posição do motorista e do passageiro. Alguns enquadramentos fixos se transformam pela entrada e saída de personagens e a mudança de luz, como se novos quadros se sucedessem no interior de uma única imagem. Apesar do baixo orçamento e da proibição legal de fazer cinema em seu país, Panahi continua burlando as regras com uma criatividade ímpar.
Three Faces, inclusive, encontra espaço para comentar explicitamente a situação jurídica do cineasta, e para satirizar outros papéis em que Jafari atuou na televisão local. O filme brinca consigo mesmo, a exemplo da cena em que a atriz pergunta ao diretor: “Você não disse que estava preparando um projeto sobre uma tragédia, e que teria um papel para mim?”, ao qual ele responde que não. Bom, este filme existe, e combina bom humor, crítica social e um interesse profundo pela natureza das imagens.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.