O jogo da manipulação
por Bruno CarmeloEste projeto ambicioso parte da tentativa de cruzar duas formas bem conhecidas de poder: por um lado, o controle de um terapeuta sobre o seu paciente, e por outro lado, o domínio de um diretor de cinema sobre seus atores. Ambos os casos lidam com questões de imagem, autoestima e ética profissional. Enquanto um permite relações de transferência e projeção (a identificação com o terapeuta, a atração por ele), o segundo envolve questões de autoria criativa. Quem é responsável pelo sucesso de um personagem de cinema: o diretor, o ator? Ou ainda o roteirista e demais assistentes? Sibyl nasce da vontade de unir cinema e psicanálise (ambos curiosamente nascidos no mesmo ano de 1895).
O roteiro deixa a aparência de ser um projeto cautelosamente trabalhado e reescrito, em diversas versões. Não existe uma única cena desprovida de sentido preciso, nenhuma metáfora que não se justifique pela narrativa rumo à conclusão. Trabalha-se com imagens funcionais: é preciso mostrar de que maneira o vício em álcool ainda perturba a vida da terapeuta Sibyl (Virginie Éfira), como a gravidez inesperada da paciente Margot (Adèle Exarchopoulos) perturba as duas mulheres, e como a psicóloga decide transformar as crises desta atriz problemática no material de seu romance. Cada personagem coadjuvante entra e sai de cena com um motivo específico.
Surge então uma ciranda de dominações secretas: Sibyl se apropria da vida alheia sem consentimento, Margot faz chantagem para tê-la em exclusividade, a irmã da terapeuta instrui crianças a mentirem para os pais, o ator Igor (Gaspard Ulliel) busca rapidamente trazer Sibyl para o seu lado da briga, e a diretora do filme em que trabalham, Mika (Sandra Hüller), tenta usar um caso extraconjugal em benefício de suas cenas. Enquanto no suspense francês Dentro da Casa o espectador se perguntava quem manipulava quem, aqui a resposta se torna clara: são todos profundamente manipuladores, dentro e fora da esfera de seus trabalhos. Por mais que Sibyl e Margot se preocupem uma com a outra, ambas são movidas essencialmente pelo benefício que podem tirar para si próprias.
A maior parte da trama se desenvolve com a aparência de um suspense clássico, embora o roteiro permita eventuais alívios cômicos (através de Sandra Hüller e Laure Calamy, em especial). Apesar de bem construído, o projeto se ressente da ausência da vida cotidiana, ou de qualquer forma de metáfora que não possa ser decifrada em registro utilitário. Seria possível compreender de que modo estes personagens pensam e agem por seus gestos diários, porém a diretora Justine Triet prefere uma trama rocambolesca, disparando signos psicanalíticos a cada cinco minutos, referenciando traumas de infância e desejos ocultos. A galeria humana soa menos verossímil do que operacional: é difícil imaginar estas figuras vivendo em qualquer outro contexto diferente aquele proposto pela cineasta.
Ao menos, Triet trabalha com uma ótima montagem, certamente o melhor aspecto do filme. A narrativa salta de maneira ágil do passado ao presente, do namorado anterior de Sibyl (Niels Schneider) ao atual (Paul Hamy), enquanto diferentes trilhas sonoras são combinadas ao longo de uma única cena, provocando efeitos muito interessantes. A utilização de diálogos em off e a inserção de flashes não explicados contribuem à impressão de um exercício mental, em conjunção com algumas imagens bem pensadas (os reflexos no espelho, as comparações entre o corpo da atriz e o da terapeuta). O projeto poderia se tornar ainda mais interessante caso apostasse de fato na sinestesia e nas ambiguidades. No entanto, ele caminha pela linha tênue entre o suspense que se leva a sério demais e o conto sombrio beirando a fantasia.
Os atores, muito comprometidos, hesitam igualmente entre ambos os registros, sem poderem se aprofundar em nenhum dos dois. Refém de suas ambições e de sua sobrecarga de símbolos, Sibyl acaba abandonando alguns elementos importantíssimos da premissa, a exemplo do livro escrito pela terapeuta, que se torna inútil rumo ao desfecho. O projeto se abre com a manipulação inerente à produção artística (todo livro ou filme implica numa apropriação do real), apenas para minimizar a importância da literatura e do cinema dentro da trama. Outras descobertas deste emaranhado soam igualmente anticlimáticas, apressadas. Trier propõe um jogo fascinante, mas vai perdendo o controle de suas peças enquanto multiplica os lances. Ao invés de um intricado jogo de xadrez, reproduz a estrutura de um castelo de cartas.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.