Trans-formação
por Bruno CarmeloAs cenas iniciais de Girl surpreendem pelo ponto de partida raro no que diz respeito à representação da transexualidade: quando vemos Lara (Victor Polster) pela primeira vez, ela vive como mulher, tem feições femininas, é aceita pelo pai (o comovente Arieh Worthalter) em sua identidade feminina, tem médicos e psicólogos compreensíveis e acaba de ser aceita numa rígida academia profissional de balé. Ao invés da típica jornada de descoberta ou aceitação, começamos momento em que não há conflito. Tudo vai bem.
Ao invés de efetuar o caminho da dificuldade rumo ao otimismo, o roteiro propõe o sentido inverso. Cena após cena, o diretor Lukas Dhont começa a revelar que a situação é muito mais complexa do que parece. Lara enfrenta uma carga física e emocional absurda para uma adolescente de 15 anos de idade: além dos dilemas típicos da puberdade, agravados pela inadequação do corpo (Será que algum garoto vai me amar? Como esconder o pênis?), ela deve se acomodar aos efeitos dos hormônios e às exigências intensas do aprendizado do balé clássico, principalmente no mundo feminino, onde a concorrência é maior.
Girl testemunha a progressão lenta e inevitável de uma personagem prestes a se romper. Lara é tímida, educada, sempre responde que está muito bem, embora evidentemente não esteja. Mesmo inserida num contexto belga relativamente progressista, a inserção social oculta ignorâncias e hipocrisias das instituições (o professor que pergunta a opinião das alunas sobre a presença de Lara no vestiário feminino) e dos indivíduos (a colega que insiste em ver o corpo da protagonista), sem falar no irmão pequeno que, quando está nervoso, chama a irmã mais velha pelo nome de batismo.
Além de retratar com respeito os dramas ligados à identidade de gênero, o projeto surpreende por atribuir grande atenção ao afeto. Em muitos filmes de temática semelhante, o indivíduo transexual se resume ao corpo, mas Lara é felizmente vista como uma garota que se apaixona e possui desejos sexuais como qualquer outra. O corpo é obviamente um elemento central, porém percebido como parte integrante da identidade. Dhont estabelece uma equivalência entre a dança e a transição de gênero no que diz respeito à capacidade do corpo em se transformar. Se achamos aceitável que os pés sejam forçados, a postura seja reajustada de modo anti-anatômico às convenções da dança, por que não poderia ser ajustado à realidade do gênero da personagem?
Esteticamente, Dhont aplica as regras cristalizadas do cinema realista de tendência psicológica: ele centra 90% dos seus enquadramentos no rosto da personagem, deixando que as mínimas expressões transmitam todas as angústias desta garota, que mal pode esperar por ter um corpo plenamente feminino. Felizmente, ele é ajudado por Victor Polster, que oferece uma atuação contida em termos de composição, mas rica nas pequenas variações exigidas por cada cena. O aparente estoicismo diante das agressões é contradito pela dor que transparece em seu rosto. Durante a maior parte da projeção, o drama deixa um grito preso na garganta, como se a garota não pudesse – ou não soubesse como – verbalizar todos os complexos sentimentos que tomam conta dela.
É verdade que a cartilha naturalista possui suas limitações, e poderia se beneficiar de maior variação imagética, ou da inserção de metáforas. Mas Dhont prefere um cinema direto, cronológico, de causas e consequências. No caso de uma personagem para quem o tempo é um elemento fundamental – ela quer ser adulta logo, quer namorar logo, quer ter seios logo – a abordagem faz sentido. Girl deve incomodar grupos LGBT pela escolha de um ator cisgênero para interpretar uma mulher transexual, porém representa um passo fundamental rumo à abordagem da transexualidade sem fetiches nem condescendência.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.