Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Verão

A gentileza do roqueiro soviético

por Bruno Carmelo

A princípio, este filme sobre um dos ícones do rock russo dos anos 1980 promete apresentar todos os excessos e subversões atribuídos ao gênero. Além disso, a carreira do jovem Viktor Tsoi é marcada pelo controverso relacionamento com Natasha, esposa de seu mentor musical, o roqueiro Mike Naumenko. No entanto, desde as primeiras imagens, o espectador pode se surpreender com um show da banda Zoopark diante do público sentado, silencioso, vestido como numa missa de domingo.

Os protagonistas também estão distantes do imaginário de sexo e drogas. Viktor (Teo Yoo), Natasha (Irina Starshenbaum) e Mike (Roman Bilyk) não bebem, não usam drogas, não fazem sexo. Quando dormem na casa dos amigos após um ensaio, pedem a autorização da mãe por telefone. Este panorama artístico soviético descreve um contexto social muito diferente do ocidental. Embora os integrantes do Zoopark e Kino admirem a rebeldia de Velvet Undergound, Blondie, Iggy Pop e tantos outros, eles são constantemente interrogados sobre a adoração à cultura “inimiga” e a função de suas canções na construção de uma identidade nacional.

Os maiores dilemas dos músicos são de ordem ideológica e criativa. O cineasta Kirill Serebrennikov, figura controversa em seu país, onde se encontra em prisão domiciliar, dedica pelo menos dois terços do filme às discussões sobre o conteúdo das letras, os melhores instrumentos para um show ou efeitos preferidos para a gravação em estúdio. A política está ausente das preocupações dos jovens, e também do filme de modo geral. Pode-se argumentar que a presença destas figuras diferentes da norma constitua um gesto político em si, mas nenhuma bandeira particular é defendida por Viktor, Mike e seus colegas.

Diante de artistas tão bem comportados, e de uma fotografia em preto e branco elegante, com uma câmera deslizando lentamente por personagens e cenários, a maior ousadia de Leto se encontra na falta de conflitos. O roteiro está repleto de atividades (os personagens cantam, se deslocam, conversam), mas não traz conflito no sentido estrito de oposição de vontades. A pacífica Natasha aceita tranquilamente a omissão do marido na criação do filho, Mike permite na hora que a esposa dê um beijo em Viktor, e até facilita o encontro de ambos a sós. Quando discordam sobre música, ou o mentor ou o pupilo se cala e acata a vontade alheia.

Esta é, portanto, uma curiosa história de harmonia e conciliações. Serebronnikov inclui alguns efeitos de videoclipe, divide a tela em três para mostrar as letras sendo escritas, opta por inserts coloridos, mas nenhum destes elementos constitui uma dissonância em si, muito pelo contrário. As cenas musicais, tanto diegéticas quanto sonhadas (os interstícios nos quais as bandas se imaginam fazendo covers americanos dentro do trem ou do ônibus) são vibrantes e bem filmadas, porém reproduzem os recursos esperados da estética do rock. O mesmo vale para as insistentes cartelas de que “Isso não aconteceu”, erguidas por um personagem, em busca de um ruído um tanto fácil na representatividade das imagens.

Leto se conclui como uma obra competente, mais preocupada com sensações do que fatos. O clima eufórico dos encontros entre os jovens é verossímil, mas não deixa de soar repetitivo quando se percebe que o filme não pretende encaminhar a narrativa a nenhum lugar específico, apenas captar o cotidiano médio destes músicos. Pelo visto, a vida dos roqueiros não precisa ser regada a catarses e hedonismo. Ela também pode ser melancólica, simples, pontuada por pequenos prazeres – a exemplo de Natasha e Viktor, que decidem atravessar a cidade inteira com uma xícara de café na mão para entregá-la a Mike. Existe espaço para gentileza no rock, e na História.

Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.