Psicologia da artista erótica
por Bruno Carmelo“Eu nunca vou tirar a máscara, tudo bem?”, avisa Narcissister ao operador de câmera. A artista é também diretora do projeto, e mesmo assim, faz questão de garantir à equipe - e ao espectador, por extensão - que não vai revelar a identidade por trás do codinome. Narcissister Organ Player não é uma espécie de documentário revelador, no qual a artista expõe segredos e passagens desconhecidas aos fãs. O foco da jovem americana é entender o que a motivou a fazer uma arte erótica, com objetos retirados e introduzidos no ânus e vagina como forma de expressão poética.
As respostas são encontradas no passado familiar. A autora divide o tempo de tela com o irmão, o pai e principalmente a mãe, com quem construiu uma relação fusional, a ponto de colocá-la sentada no palco durante as suas apresentações. A diretora propõe a hipótese que sua relação libertária com o corpo venha da exposição constante ao corpo doente da mãe, e à relação natural desta com a nudez. Narcissister narra a primeira vez em que viu a vagina da mãe, comenta a sua sensação diante das cicatrizes. No palco, simula coreografias envolvendo fezes, corações, trompas de Falópio e pulmões. A menção à “tocadora de órgãos” do título diz respeito não a algum instrumento musical, e sim aos próprios órgãos genitais e outros órgãos do corpo humano.
Os episódios familiares são transmitidos aos poucos, com um belo respiro entre cada passagem, entrecortada com novas apresentações da artista negra, ou relatos sobre suas inseguranças em relação à etnia ou condição social. Na parte central da narrativa, a exposição de fotos e vídeos se torna um pouco mais linear, mesmo um tanto repetitiva, mas ainda permite adições interessantes à personagem da mãe e a si mesma. Em termos audiovisuais, existe um atrito complexo no que diz respeito à representação de alguém que não mostra o rosto, mas faz close-ups de sua vagina; ou ainda que não revela o nome, porém fornece detalhes do endereço onde morava, da enfermidade da mãe, do aborto efetuado na juventude. A autoexposição vai do excesso à insuficiência em comparação com as normas sociais.
Embora as performances sejam fascinantes, pela simplicidade e engenhosidade das coreografias e adereços, é uma pena que todos os números sejam apresentados apenas à câmera, e jamais a uma plateia. Não sabemos de que modo a arte de Narcissister se insere na sociedade, que reações ela provoca no público, onde se apresenta - nos palcos, em círculos de arte, ao lado de outros artistas contemporâneos, em espaços abertos? O filme expõe uma parte considerável de sua arte, mas não tenta analisá-la. O único ponto de compreensão diz respeito à psicologia da artista. Não por acaso, paira um teor terapêutico na empreitada da diretora sobre si mesma. Mas em se tratando de uma persona intitulada Narcissister, como julgá-la por isso?
O documentário se conclui de maneira eficiente, e mais linear do que parecia a princípio - partindo de um nascimento simbólico a uma morte efetiva. Narcissister Organ Player constitui um álbum de retratos, uma sessão nostálgica comentada pela artista com notável olhar crítico sobre a sua própria trajetória. Por mais que centre o olhar da câmera sobre si mesma, a jovem não se vangloria, e tende a minimizar seus momentos de fama midiática. Esta é provavelmente a abordagem mais afetuosa que ela poderia encontrar a uma forma de arte considerada transgressora e radical. A vagina perde seu caráter socialmente controverso para se tornar um símbolo de feminilidade e de carinho entre duas gerações de mulheres dotadas da mesma sensibilidade artística.
Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.