Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
A Maldição da Chorona

Mãe contra mãe

por Bruno Carmelo

Existe algo muito mais assustador na figura da Chorona do que a maquiagem carregada ou as mãos escurecidas. A personagem é uma mãe que matou os próprios filhos, em vingança simbólica contra o marido adúltero, e agora, enlouquecida, busca se apropriar dos filhos alheios. A mãe, símbolo máximo de cuidado e proteção para a maioria das sociedades, se converte em perigo aos pequenos. O choro de dor desta Medeia mexicana é real, não apenas uma armadilha para seduzir criancinhas. Do mesmo modo, a compaixão das pessoas diante de um choro distante – ou seja, o que nos torna humanos capazes de empatia -, é o mesmo elemento que nos coloca em risco. Em outras palavras, nossa humanidade e nosso amor familiar constituem a verdadeira ameaça neste filme de terror.

Por isso, este terror funciona igualmente bem, ou até melhor, em sua vertente dramática. O diretor Michael Chaves e o roteirista Tobias Iaconis constroem personagens verossímeis de classe média-baixa, para os quais a cultura protestante norte-americana e a crença católica mexicana se misturam de modo fluido. Linda Cardellini está excelente no papel principal de uma mãe nada idealizada, apenas um pouco embrutecida pela morte recente do marido e pelas difíceis condições de trabalho. Seria fácil investir no ideal de mãe-coragem, porém as figuras centrais (incluindo a própria Chorona e Patrícia, mãe de origem latina, presa por abusos domésticos) são personagens falhas em suas tentativas de proteção e afeto. Como nos melhores filmes de terror recentes, o natural e o sobrenatural se misturam, e as questões de classe social, etnia e gênero se tornam fundamentais na descrição de um ambiente realista.

A equipe técnica e criativa de A Maldição da Chorona efetua um ótimo trabalho de nuances – algo importantíssimo no terror, gênero tão afeito a maniqueísmos. A casa não é nem desleixada demais, nem cuidada em excesso; a iluminação é escura como seria conveniente a uma mãe que passa pouco tempo no local, e mal abre as janelas. Os atores não são enfeados, tampouco embelezados em excesso. Em especial, o trabalho de câmera é preciso, desde o longo plano-sequência do início, com as crianças correndo para dentro de casa, até uma assustadora cena com crianças num corredor esverdeado, muito bem montada, passando pela irrupção de uma figura assustadora em flashes escuros e sem som. Chaves inclusive se arrisca num plano subjetivo da Chorona, observando a casa de fora, e outra imagem que começa como um ponto de vista de Anna (Cardellini), até a personagem aparecer dentro do quadro.

Estas ousadias são raras dentro do cinema comercial, mas se alinham com o tratamento estético bastante apurado dos dois primeiros filmes da franquia Invocação do Mal. Percebe-se um cuidado notável com o uso de lentes, de movimentos de câmera, de tratamento de figurinos e objetos – ou seja, o desenvolvimento da ambientação. Além disso, os atores estão uniformemente bem dirigidos, o que inclui as crianças, que possuem cenas mais complicadas do que a média exigida de atores mirins. Ao mesmo tempo, este é um dos poucos filmes que consegue misturar a cultura tipicamente norte-americana com a presença mexicana sem transformá-la num conflito, ao passo que o sincretismo religioso (o encontro de curandeiros e padres) é destituído de julgamentos morais.

A Chorona, com seus suplícios em espanhol – sem legendas, diga-se de passagem – não é percebida apenas enquanto fetiche, nem enquanto monstro, e sim como uma figura hispânica perfeitamente integrada aos costumes dos Estados Unidos. Melhor do que isso, ela propõe um espelhamento interessante das três mães desta história, que acabam por se parecer cada vez mais: Patrícia (Patricia Velasquez) se torna uma Chorona por querer se vingar da assistente social que roubou seus filhos, e Anna repete os mesmos passos de Patrícia, negligenciando os próprios filhos à medida que embarca na paranoia da presença maligna ao redor. (Aliás, a montagem é inteligentíssima ao sugerir o possível abuso de Anna com os filhos desde os primeiros minutos).

Algumas cenas arriscadas em termos de direção tornam-se tão belas quanto assustadoras, por misturarem afeto e perigo – vide os cabelos lavados na banheira, ou as crianças presas no armário. Esta se torna uma guerra entre mães, ou ainda a batalha simbólica de uma mãe que, para ser boa em sua função, precisa prejudicar a família alheia. Existe algo inerentemente perverso no mecanismo iniciado não apenas pela vilã sobrenatural, mas também pela assistente social e pelos outros assistentes que vêm questionar a conduta de Anna mais tarde na trama. Enquanto isso, os homens estão ausentes (mortos), ou secundários, em posição de celibato (padres) e de inatividade – vide o policial que não ajuda muito e o padre que se anuncia como possível salvador, antes de se retirar da trama.

O embate crescente entre mulheres poderia muito facilmente chegar ao ridículo no clímax, mas é nesta hora que A Maldição da Chorona permite a entrada do humor. O curandeiro Rafael (Raymond Cruz) possui um tipo curioso de comicidade, mantendo a expressão séria, rindo da própria asfixia da situação. Ele permite que a tensão construída pelo diretor encontre alguma vazão, ao passo que mantém a perspectiva da farsa e da maquinação humana (a cena dos ovos, a chegada de Patricia ao invés da Chorona). Enquanto a maioria dos filmes de terror enfiaria os dois pés no sobrenatural, aumentando a quantidade de efeitos visuais e sonoros, este projeto sustenta uma perspectiva humana, mais próxima do realismo, brincando com efeitos visuais e sonoros analógicos como portas rangendo ou uma luminária rolando pelo chão. Mesmo um impossível manequim vestido de noiva é utilizado com a devida conotação de autoparódia.

O trecho cômico pode soar desconexo na narrativa, porém demonstra raro bom senso em perceber os limites de sua própria abordagem. A Maldição da Chorona se conclui com uma imagem excelente, que evita o tradicional prelúdio de uma sequência em prol de algo muito mais instigante e ambíguo. Por trás de sua aparência de Filme B, vendendo sustos fáceis e maquiagem trash (elementos que, de fato, existem em abundância nas imagens), este terror consegue embutir um estudo psicológico interessante, sobreposto a um cenário socioeconômico preciso e contemporâneo. Trabalha-se a culpa, o medo, o pesar, a inveja, além da pobreza e a marginalidade. Os personagens possuem motivações muito mais complexas do que se esperaria das tradicionais figuras de terror – algo que vale tanto para os heróis quanto para seus adversários.