O mundo real em meio à fantasia
por Barbara DemerovEm certo momento do novo filme de Danny Boyle (Quem Quer Ser um Milionário?, Trainspotting), o protagonista toca um trecho de Yesterday, uma das mais famosas canções dos Beatles, em seu novo violão. Com a câmera lentamente girando ao redor da mesa, aos poucos ele percebe que seus amigos estão lhe observando com uma emoção intensa, como se nunca tivessem escutado tal música antes. Mas no imaginário do diretor, é exatamente isso o que acontece: a ausência de uma das bandas mais conhecidas do mundo se faz presente, o que resulta numa fábula moderna sobre um mundo que nunca conheceu o quarteto de Liverpool e reconhece a Abbey Road como apenas uma rua comum.
O universo que Boyle cria em Yesterday impressiona pela sutileza. É realmente singelo porque seu protagonista (Jack, um jovem músico mal-sucedido, interpretado por Himesh Patel) se encontra, metaforicamente falando, sozinho no mundo, pois apenas ele permaneceu com os Beatles na memória após um apagão ocorrer em todo o planeta. Quando as luzes reacenderam, não só a banda como também marcas como Coca-Cola e o cigarro simplesmente deixaram de existir. É como se fosse um novo mundo, e um lugar mais vazio, aos olhos do diretor. Um vazio que se encontra especialmente no meio artístico, com o show business escancarado no sentido de fazer dinheiro como se fosse água. Apesar disso não ser nem de longe uma novidade, o roteiro trabalha essa característica do mercado como um modo de nos mostrar que o público não está apaixonado pelas canções dos Beatles que Jack toma para si: todos se apaixonam pela persona que a empresária musical Debra (Kate McKinnon) cria a fim do protagonista se tornar mais rentável.
Deste modo, a imagem entra um pouco em conflito com o conteúdo. Nunca deixa de ser satisfatória a chance de ouvirmos as composições de Paul, John, George e Ringo através da voz de um jovem que tem a melhor das intenções: espalhar "a palavra dos Beatles" até onde o alcance for possível. Mas a ideia de Yesterday parece ter dificuldade em acertar o alvo, pois é mais do que evidente que existem artistas que vêm apenas uma vez - e na hora certa. Exatamente por isso, algumas músicas da banda (como Revolution, cuja composição nasceu como protesto pela Guerra do Vietnã, ou outras criações pessoais) certamente soariam um tanto vazias se apresentadas pela primeira vez ao mundo nos dias atuais, sem o devido background. Mas, mesmo assim, Jack encontra prestígio sem dificuldade no século XXI com palavras que ecoaram há mais de 40 anos, como um respiro de ar fresco.
Não que Jack seja um personagem vazio: muito pelo contrário, seus sonhos e vontades são próprias e sua luta por espaço no ramo artístico é sincera. Ele nunca deixa de ser um compositor carismático e potente, que ganha a admiração de todos por onde passa - incluindo de Ed Sheeran, artista que participa de boas cenas do filme e se sente diminuído (com bom humor) com as criações de Jack. Porém, se apenas focasse mais na parte musical, com as ótimas passagens do protagonista relembrando as canções da banda, Yesterday se encaixaria melhor na própria ideia. Mas, ao mesmo tempo que aborda o desenvolvimento de Jack enquanto músico, o filme centra-se muito em sua amizade/romance com Ellie (Lily James). Tal escolha narrativa não é totalmente desconexa com o eixo principal do filme, mas por muitas vezes o relacionamento entre Ellie e Jack parece confuso demais, e ambos também custam a entender o que se passa ali.
A montagem acelerada, talvez uma das características mais identificáveis na cinematografia de Danny Boyle, faz com que a história soe um tanto apressada em sua introdução, mas o roteiro de Richard Curtis exala humor britânico do início ao fim, inserindo situações e diálogos inesperados que divertem sem o menor esforço - sem contar a belíssima fotografia, que mescla sequências no campo e na cidade com o igualmente belo trabalho com figurino e cores, vívidas como os anos 70. Com o auxílio do elenco que capta efetivamente a ingenuidade e o carisma necessários para que o embarque a este tipo de ficção seja descomplicado, Yesterday ganha fôlego não necessariamente com as canções dos Beatles, mas no poder que elas implicam na vida de Jack. O conflito interno do personagem por se aproveitar do sucesso que outrora coube a outras pessoas é uma crescente, porém não entrega um clímax potente a ponto de ser maior que a construção até ali.
Um clímax ou um conflito que realmente abale o espectador não está na mira de Boyle desta vez, mas há uma cena específica que pode ser vista como seu apogeu. Contentando-se com a sutileza já citada e a chance de criar uma nova realidade a partir da ausência dos Beatles, o diretor elabora um breve momento em que o espectador pode viajar um pouco mais longe com relação a este inusitado universo. Com um belo diálogo entre Jack e um personagem inesperado, é possível sentir o filme encontrando seu encaixe. Acima de qualquer coisa, Yesterday se trata de possibilidades e sonhos, o impossível encontrando formas de ser possível. Fãs de Beatles, como o esperado, serão compensados com este tributo à banda que, mesmo não encontrando exatamente seu arranjo enquanto cinema, pode ser resumido com exatidão pela música All You Need Is Love.