A beleza que existe em nossas 'feras' internas
por Aline PereiraEm 2019, a diretora Domee Shi venceu o Oscar de Melhor Curta-Metragem com Bao, animação da Disney-Pixar exibida antes de Os Incríveis 2. Na época, a artista já havia mostrado um domínio total da habilidade de falar sobre pressão e relações familiares, mas, agora, com Red: Crescer é uma Fera esta sensibilidade atinge um nível excepcional. A animação reúne o que o estúdio tem de melhor e nos presenteia com uma história que vai dos encantos mais infantis aos anseios mais adultos.
Red: Crescer é uma Fera tem como protagonista Meilin, uma garota de 13 anos, filha de imigrantes chineses e que lida com a pressão e vigilância constante da mãe, Ming. Seu processo de amadurecimento fica mais complicado graças a uma “maldição” que recai sobre ela: a cada vez que Meilin sente emoções fortes demais (positivas ou negativas), ela se transforma em um panda-vermelho gigante - difícil de esconder.
Família e saúde mental são tema de Red: Crescer é uma Fera
Em 2015, a animação Divertida Mente, uma das melhores produções da Pixar até hoje, trouxe um debate encantador sobre saúde mental e sobre o processo de lidar com as emoções de uma forma muito interna, quase invisível para os outros. Agora, Red dá sequência ao assunto com uma abordagem mais “exterior”, que diz respeito a como colocamos para fora nossas aflições, qual é a reação que elas provocam nas outras pessoas e como nos encontramos em meio a esse equilíbrio de pratos.
Para a protagonista Meilin, a grande questão é a individualidade: enquanto ela passa pela fase de se sentir mais responsável pelas próprias ações e querer fazer valer suas vontades, a mãe vem como um rolo-compressor. Ming não aceita que a filha desvie do caminho que ela traçou para seu sucesso e que, claro, exclui qualquer tipo de válvula de escape. É um problemão para Meilin que, além de ser muito sociável, vive também o momento de descobrir interesses românticos e sua fúria adolescente.
A ligação entre Mei e Ming, então, reúne diversas camadas subjetivas, exatamente como são as relações na vida real: choque de gerações, distância entre familiares, pressão pelo sucesso e puberdade, além conflitos culturais. Com todas essas questões, é difícil encontrar alguém que, na vida real, também não vire um panda-vermelho gigante internamente.
Nossos monstros são parte de nós - e não precisamos matá-los
O urso surge na vida de Meilin como um monstro, como uma evidência clara de irracionalidade e frustração - e enxergá-lo dessa forma só o torna ainda mais incontrolável. Ao longo da história, claro, a adolescente vai aprendendo a lidar com a sua fera interior e, em um dos momentos mais tocantes (sem spoilers!), encontra uma forma não só de conviver com o panda, mas de usá-lo a seu favor, ainda que nem sempre da forma mais madura.
O que temos, então, é uma reflexão sensível e muito bonita sobre aceitação: esses monstros podem fazer parte de quem somos e até podem tentar assumir o controle vez ou outra, mas isso não significa, de forma alguma, que devemos exorcizá-los a qualquer custo. Muitas vezes, seu surgimento é um sinal de que precisamos olhar para dentro, entender as emoções e o que está na raiz delas - para, aí sim, acalmá-las. Mesmo porque, vale destacar, o panda-vermelho de Red não aparece só nos momentos de raiva, mas também nas expectativas e no êxtase.
A história de Meilin também nos faz pensar sobre a força que damos aos "nossos pandas-vermelhos” quando ansiamos demais pela maneira como serão vistos pelo mundo. De forma geral, somos resistentes, pelos mais diversos motivos, quanto a mostrar vulnerabilidade a expor nossos lados mais “feios” (entre muitas e muitas aspas aqui), mas a questão é que eles também podem nos aproximar uns dos outros.
Red nos propõe a perceber como permitir abrir-se para quem está mais perto de nós também pode ser um caminho para conexão e entendimento - o próprio e o do outro. Além disso, as reações podem surpreender: é possível que estejamos profundamente ligados a pessoas que se sentem da mesma forma e isso nunca fique claro porque insistimos em silenciar nossas particularidades.
Animação de Red: Crescer é uma Fera é hipnotizante
Ao longo de décadas de grandes produções, a Disney-Pixar construiu uma identidade inconfundível, de Toy Story ao mais recente Luca, de 2021. Red: Crescer é uma Fera acrescenta à fórmula elementos novos que criam um clima hipnotizante. A diretora Domee Shi, que nasceu na China e cresceu no Canadá (onde se ambienta a história) faz uma grande combinação entre a cultura ocidental e oriental: assim, a “carinha” do estúdio com que já estamos acostumados traz ótimas referências da cultura pop do oriente.
Quem já conhece algumas obras de animes e mangás famosos vai identificar facilmente o estilo: produções como Sailor Moon e Sakura Card Captors, por exemplo, parecem ter sido grande fonte de inspiração. O resultado é uma animação viva, alegre e hipnotizante, que conta ainda com elementos nostálgicos: a história de Meilin se passa no início dos anos 2000, auge dos bichinhos virtuais, toca-CDs, revistas com pôsteres e boybands. A protagonista,aliás, é muito fã de uma banda que a geração dos anos 90 provavelmente vai relacionar a grupos como Backstreet Boys e N’Sync, enquanto os mais novos, sem dúvidas, vão conectá-la aos fenômenos do K-Pop atual.
Vale ressaltar também a presença de personagens coadjuvantes tão encantadores quanto Meilin. A personagem tem um grupo de amigas próximas que elevam ainda mais a importância dos dilemas principais: mesmo sem ter histórias aprofundadas, suas características mais evidentes são suficientes para preenchermos as lacunas e entendermos, sem esforço, por que são tão importantes no contexto geral.
Filme da Disney-Pixar é para crianças e adultos
Produções como Soul, Viva - A Vida é Uma Festa, Up - Altas Aventuras, entre tentas outras, tornaram o estúdio uma referência no quesito “histórias para todos”. Crianças e adultos já sabem que vão se envolver com praticamente todas elas. Não é diferente com Red: as nuances mais sutis do debate sobre as emoções requerem, claro, mais maturidade e vão ser capturadas pelos mais velhos, mas o ritmo e o espírito alegre da animação têm tudo para prender a atenção dos pequenos com o “monstro” mais fofo dos últimos tempos.
Red: Crescer é uma Fera é a fórmula mágica da Pixar em seu estado mais cristalino e que se comunica com o que há de mais íntimo e de mais universal ao mesmo tempo.