Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
High Flying Bird

As regras do jogo

por Renato Furtado

Ruas abaixo e ruas acima, Ray Burke (André Holland) perambula pelas esquinas de Nova Iorque com urgência e obstinação: apesar de seu semblante plácido e charmoso, ele é um homem em uma missão. Uma tarefa esta que é praticamente imperceptível, quase invisível: operando nas margens do sistema, nas brechas estruturais de um universo tão tradicional e conservador quanto o da NBA, a liga de basquete profissional dos Estados Unidos, Burke não deseja mudar as regras do jogo — ele quer mostrar que elas já mudaram.

A despeito de sua ambientação esportiva, High Flying Bird, primeiro filme do aclamado Steven Soderbergh (Onze Homens e um Segredo) para a Netflix, utiliza a indústria basquetebolista, um contexto de locaute — prática criminosa, proibida por lei, que grosso modo caracteriza uma “greve de patrões” — e as polêmicas recentes e reais do popular esporte estadunidense como plataforma para alçar voos muito mais altos. Escrito pelo vencedor do Oscar Tarell Alvin McCraney (Moonlight: Sob a Luz do Luar), este drama está mais preocupado com a fragmentação geral de todos os sistemas contemporâneos.

A sequência inicial, liderada por um Holland de discurso frenético, cuja performance intensa dá vida à musicalidade dos diálogos de McCraney, é perfeita como cena primeira porque dá o tom do que virá adiante. Primeiramente no que tange o ritmo de condução imposto por Soderbergh, que após a experiência com o suspense Distúrbio, demonstra domínio total do iPhone como câmera, aproveitando-se da mobilidade oferecida pelo aparelho celular e de sua perspectiva fotograficamente ampla de fábrica para infundir na trama o compasso de uma veloz e cheia de groove canção folk — a titular “High Flying Bird”.

E, em segundo lugar, no que se refere aos próprios questionamentos levantados pelo drama. Aqui, o imbróglio do mundo do basquete também representa, de certo modo, a atual posição cultural e social da população negra nos Estados Unidos e o cinema, hoje fragmentado entre os modos de distribuição tradicionais e a estratégia inaugurada pelos serviços de streaming — nem mesmo a Netflix, aliás, escapa do escrutínio de Soderbergh e McCraney. High Flying Bird é, portanto, um drama elegante, verborrágico e quase teatral, âmbito de origem do roteirista, que carrega ideias profundas sob sua superfície esportiva.

Ao debruçar-se sobre temas como a escravidão; o constante choque entre patrões e empregados — no caso, os donos das equipes da NBA, ou homens brancos, que paralisaram a liga, e portanto congelaram os salários dos jogadores, homens negros em sua maioria, para atingir mais lucros ao renegociar contratos televisivos de exibição das partidas —; comodificação versus arte, High Flying Bird questiona exatamente a própria constituição do tecido social americano, examinando como as ações disruptivas de determinadas partes, públicas ou privadas, perturba as tradições e o status quo.

No entanto, apesar de cativantes por si só, os conceitos lançados em profusão e o cada vez mais mirabolante plano de Burke para desfazer o locaute e garantir o pagamento de seu cliente, o calouro da liga Erick Scott (Melvin Gregg), perdem fôlego quando Soderbergh amansa o compasso inicialmente acelerado de sua regência. A fluidez assombrosa do filme, expressa tanto pela câmera quanto pela montagem —assinadas pelo diretor através de seus costumeiros pseudônimos: Peter Andrews e Mary Ann Bernard —, perde-se, dando lugar a um certo tipo de estagnação, provocado pelo freio que o cineasta precisa acionar.

Não parece ser exatamente uma escolha de Soderbergh, mas sim uma decisão tomada para que ele pudesse dar conta do desenrolar paradoxalmente megalomaníaco e calmo da narrativa, que caminha da mesma forma que seu protagonista. A ordem dos eventos acarreta uma leve confusão e o desfecho da tática inventada por Burke soa mais surpreendente porque repentina do que por sua inegável genialidade como storyteller — a visão narrativa que High Flying Bird tem sobre as fundações das redes sociais e a manipulação midiática é pontual, certeira e muito aguda.

É um problema de estrutura, de fato. Ao nos deixar no escuro, simplesmente aludindo às jogadas de mestre de Burke ao invés de apresentar as mesmas em tela de maneira linearmente temporal, o cineasta e o roteirista enganam e afastam o espectador momentaneamente. É só quando as pontas soltas são finalmente atadas e o drama encaminha-se para seu intelectualmente apoteótico desenlace, que o instigante e encantador ritmo do comando originalmente promovido pelo realizador é reencontrado. Olhando por determinado ângulo, é quase como se Burke fosse mais inteligente que o próprio longa.

Talvez seja exatamente o caso, de fato, uma vez que o personagem é uma criação inspiradíssima de McCraney, que poderia até mesmo ganhar uma derivação seriada na plataforma da Netflix explorando os próximos passos do agente. Porque no instante em que High Flying Bird perde sua estrela de vista, no instante em que o filme em si não consegue acompanhar os velozes e sagazes movimentos de Burke, nós também não. O agente de Holland é quase que como um roteirista e criador cuja perspicácia parece fugir ao controle dos cineastas.

Deslizes e desdobramentos novelescos à parte, este drama da Netflix encontra seu trunfo na visão de mundo compartilhada por Soderbergh e McCraney: tudo é um jogo baseado em normas que podem — e que, frequentemente, devem — ser quebradas e todos são jogadores, sejam bons ou maus, tenham eles aprendido a superar as regras ou não. E apesar das ótimas interpretações de todo o elenco, composto por nomes como Zazie BeetzBill Duke, Sonja Sohn e um inescrupuloso e ganancioso Kyle MacLachlan, os únicos pássaros que voam acima do resto em High Flying Bird são mesmo Holland e seu Burke.