Receita de família
por Sarah LyraEsta crítica pode conter spoilers.
Uma das características mais marcantes de Depois do Casamento é sua habilidade de se equilibrar diante de um texto fraco e de uma premissa essencialmente problemática, um mérito que deve ser atribuído à competência de seu elenco. No longa, as complexidades e possibilidades do drama familiar posto em tela são extensas, mas o diretor e roteirista Bart Freundlich demonstra dificuldade em deixar uma marca mais autoral ou até mesmo em adotar uma abordagem que sustente o desenrolar da história. Por conta disso, o cineasta recorre a um formato convencional, simplista e sem identidade própria para personagens que certamente mereciam mais.
No primeiro ato, o filme solta algumas pistas sobre a estranheza com que as relações entre Isabel (Michelle Williams), Theresa (Julianne Moore) e Oscar (Billy Crudup) se estabelecem. Há um mistério permeando algumas das ações, e o longa nos insere em uma confusão que, inicialmente, não parece intencional, mas aos poucos vai revelando a presença de Freundlich no comando da trama. Exemplo disso é o convite de Theresa para que Isabel, uma mulher que acabara de conhecer, vá ao casamento da filha Grace (Abby Quinn), uma atitude pouco plausível nesse primeiro momento, mesmo com a explicação de que o tamanho da festa impediria uma situação constrangedora para a convidada.
A partir do primeiro ponto de virada do roteiro, o espectador acreditar estar diante de uma enorme (e cruel) coincidência. À medida que a trama avança, no entanto, o cineasta se faz presente mais uma vez para nos lembrar de seu controle, restaurando sua credibilidade para que sigamos acompanhando as surpresas no meio do caminho. É uma pena que, após os dois momentos citados anteriormente, esse trabalho de costurar os acontecimentos comece a desandar. Theresa é, sem dúvidas, o personagem mais bem explorado, embora não seja a protagonista. A milionária, dona de uma empresa de publicidade, tem uma fachada dura de mulher implacável e competente nos negócios, ao mesmo tempo em que se mostra vulnerável e doce no ambiente familiar, principalmente na interação com os filhos.
Nesse ponto, o roteiro sugere uma intenção de trabalhar essas características de maneira mais atenuante, desenvolvendo as camadas da personagem e nos permitindo enxergar além desses estereótipos. Entretanto, o que se vê em seguida destoa do esperado, já que Freundlich decide justamente potencializar os extremos, uma decisão que só não se mostra um clichê completo por conta da costumeira competência de Moore. É no mínimo peculiar que, diante do que é uma morte certa, Theresa decida reorganizar a família em segredo para que Isabel “assuma” seu lugar quando ela não estiver mais presente. Para isso, ela não apenas doa boa parte de sua fortuna para o orfanato administrado por Isabel, como também põe em prática algumas manobras para forçá-la a morar em Nova York, perto da filha recém-encontrada.
O problema dessa abordagem é que faz Theresa parecer uma santa, e, diante desse rótulo, o filme abre mão de explorar os aspectos mais obscuros de sua personalidade. Ora, como julgar uma mulher que, em face da própria mortalidade, tem medo de ser substituída pelos filhos e marido? Nada faria mais sentido do que mostrar seus sentimentos de raiva, impotência e inveja daqueles que continuarão vivos para seguir em frente — algo que o filme Lado a Lado faz muito bem, ao colocar o personagem de Susan Sarandon como uma mulher extremamente competitiva com a namorada de seu ex-marido. O máximo que vemos de Theresa sem sua armadura é justamente na cena em que ela pergunta a Oscar: “você vai voltar para ela quando eu morrer?”, e momentos depois, quando ela percebe que não estará presente para ver concretizada uma decisão envolvendo os filhos gêmeos.
É também problemático que os conflitos gerados pelo longa são unicamente movimentados por conta de segredos que não têm a menor razão de existir. Grace acaba de descobrir a verdade sobre sua mãe biológica e Theresa julga coerente omitir mais uma informação importante como a sua doença? E, o que é pior, com um discurso de que faz isso para protegê-la, mesma justificativa usada por Oscar para ter escondido a verdade de Grace por mais de 20 anos. Já não estava estabelecido que esse tipo de traição não apenas era desnecessária como extremamente destrutiva? Igualmente contestável é o fato de todas as mágoas serem tão facilmente perdoadas entre Isabel e Oscar, durante uma rápida cena em que relacionam uma obra de arte aos acontecimentos em suas vidas.
O personagem de Williams, inclusive, tem ainda menos espaço para ambiguidade do que o de Moore. Isabel parece perfeitamente feliz em sua vida na Índia e demonstra um intenso apego ao menino Jai (Vir Pachisia), mas na hora de tomar uma decisão que vai mudar tudo radicalmente, ela cede à chantagem emocional de Theresa sem muita hesitação — o que se torna compreensível ao levarmos em conta que ela precisava se dedicar à filha, mas o roteiro resolve a situação muito convenientemente quando mostra que, da parte de Jai, não há restrição alguma quanto ao fato de Isabel se mudar para outro país, algo incoerente diante da ideia propagada de que o garoto era extremamente dependente dela e tinha dificuldades de socialização com crianças de sua idade.
Não são raros os filmes que se pautam em tramas cuja única razão de existir é uma mentira que, se revelada, resolveria todos os problemas. Depois do Casamento é um desses casos, mas felizmente ainda assegura uma relevância cinematográfica por conta sua temática e a disponibilidade em problematizar (mesmo que superficialmente) as complicadas relações familiares.