Bibliografia: eu quero uma pra viver
por João Vítor FigueiraEncontrar o segredo hermenêutico de A Divina Comédia é tão importante para os personagens de Classical Period quanto destruir o Um Anel na Montanha da Perdição é para Frodo e Sam.
O segundo longa-metragem do realizador Ted Fendt é um filme intelectual no sentido mais estrito do termo. A direção idiossincrática do cineasta é quase parnasiana. Sua câmera fixa enquadra o rosto dos atores em primeiro plano e os deixa versar por 62 minutos sobre temas culturais e literários. Seus personagens, por hora recatados, por vezes misteriosos, exibem uma hábil desenvoltura para a erudição verbal, para o pensamento analítico, mas não tem a mesma capacidade de estabelecer pontes emocionais uns com os outros. "Como ter ligações sociais plenas assim?", indaga o filme.
A trama acompanha Cal (Calvin Engime), Evelyn (Evelyn Emile) e um grupo de colegas (talvez "amigos" seja um termo forte demais) que estudam a obra magna de Dante Alighieri com base em uma famosa tradução para o inglês publicada em 1864 pelo poeta Henry Wadsworth Longfellow. Com a verborragia de um cruzamento dos diálogos sobre cultura vistos nos filmes de Woody Allen (sem o humor) e Richard Linklater (sem o amor), a trama faz da cidade da Filadélfia uma espécie de purgatório para os protagonistas, que parecem condenados a não conseguir se relacionar uns com os outros para além da menção de referências.
Nem mesmo uma conversa mais casual termina sem a citação de um livro ou um insight sobre algum momento histórico. Tais atitudes estão muito ligadas à postura de Cal no filme, a quem Engime confere uma postura que se equilibra entre a arrogância não-intencional e uma quase charmosa inaptidão social. Para evidenciar a solidão de seus personagens, Fendt os isola no quadro por diversas ocasiões, o que tem um efeito interessante quando eles estão ouvindo alguma argumentação.
Mesmo sendo um filme que não se estende muito, a intensidade dos debates pode torná-lo cansativo. Momentos entediantes (afinal o filme se sustenta em exposições verbais de temas de nicho) dividem espaço com argumentações mais brilhantes. Passam no radar dos desajustados acadêmicos questões como a relação entre drogas psicotrópicas e pensamento contextual; o legado de Alexandre, o Grande; disputas entre protestantes e católicos na Inglaterra durante os anos seguintes à Reforma; a verdadeira identidade religiosa de Shakespeare; a poesia de Denise Levertov; a funcionalidade na arquitetura de Frank Lloyd Wright; e a possibilidade das notas de rodapé serem mais interessantes do que os próprios livros que elas ajudam a explicar.
Fendt filma uma Filadélfia cinzenta nas cenas externas e calorosa nas internas, o que simboliza a introspecção dos protagonistas. Rodado em 16mm, Classical Period adota uma estética granulada com destaque para cores não saturadas que reforça a ideia do filme olhar para o passado. O trabalho de figurino também merece destaque. Um portfólio das roupas usadas pelos personagens deveria substituir qualquer matéria da imprensa fashionista sobre o estilo normcore, totalmente adequado para pessoas que aparentam não ter tempo para pensar em mais nada além de literatura.
Classical Period poderia até ser mais longo para mostrar mais a história de fundo dos integrantes do grupo de estudos e assim aproximar mais o público da trama. Ao retratar intelectuais, o longa-metragem acaba padecendo de uma intensa falta de emoção. Por isso, quem acaba roubando a cena é Evelyn, a única pessoa no longa-metragem que consegue olhar para as entrelinhas de si mesma e reconhecer suas próprias angústias nos textos que lê, encarando na literatura um espelho possível para suas questões internas, para além da mera masturbação mental.
Filme visto na 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, em agosto de 2018.