Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Ford vs. Ferrari

Por trás das corridas

por Francisco Russo

Se você espera de Ford vs Ferrari um punhado de corridas eletrizantes envolvendo duas das mais conhecidas fabricantes de carros do planeta, talvez se decepcione. Não que elas não estejam no filme, até em boa quantidade mas espaçadas ao longo da narrativa, só que não é este o foco principal do longa-metragem. Em seu novo trabalho, o diretor James Mangold está mais interessado em esmiuçar os bastidores do automobilismo, no sentido de separar negócios do esporte em si.

Neste aspecto, Ford e Ferrari são empresas icônicas: a primeira por ser a pioneira na produção de carros em série, a segunda pelo prestígio decorrente das inúmeras corridas que participou (e venceu). Ambas são líderes em suas respectivas áreas, mas precisam ir além - este é sempre o mantra no mundo dos negócios. Tanto a Ferrari necessita de investimento, quando a Ford ambiciona o glamour e sex appeal da concorrente. "James Bond não dirige um Ford", diz um executivo. Faz sentido.

É a partir deste esforço em ampliar a percepção de sua marca que nasce a empreitada que resulta na criação de uma nova equipe de corrida, comandada por Carroll Shelby (Matt Damon, coerente entre a empolgação e dedicação junto à equipe e o lado contido perante os dirigentes). Entretanto, o pulo do gato não está propriamente no retrato corporativo apresentado no filme, com seus vários interesses conflitantes, mas na corajosa abordagem do roteiro em escancarar o contraste existente entre indústria e esporte, assumindo uma posição muito clara: a de quem trabalha na equipe.

Corajosa porque, se o cinema em si é uma arte tão valorizada por muitos, é inegável também que possui uma faceta industrial que faz a economia girar, por vezes deixando de lado valores artísticos e até mesmo desmerecendo quem realmente o produz. O que Mangold e sua equipe fazem em Ford vs Ferrari é reafirmar tal realidade no âmbito automobilístico mas, ao mesmo tempo, defendem de forma incisiva a equipe criativa contra abusos corporativos, cometidos por quem pouco entende da área em si. Ou seja, ética e valores humanos estão acima de números e ações de marketing, por mais que não tenham a mesma força na balança empresarial.

Não por acaso, outra ousadia do roteiro é pregar que, mesmo com a Ford bancando os custos da nova equipe de corrida, existe um fascínio imenso pela concorrente Ferrari: diminuta em tamanho, imensamente maior em paixão. Neste sentido, basta reparar na postura de Enzo Ferrari perante sua equipe e no olhar de respeito vindo dos concorrentes, sem a necessidade de qualquer palavra, em detrimento do comportamento pouco interessado dos dirigentes da Ford. Mangold, de novo, alfineta o mundo empresarial com habilidade.

Bastidores dos negócios a parte, Ford vs Ferrari é também um filme bastante competente sobre a paixão em torno das corridas automobilísticas, aqui representado pelo genial e genioso personagem de Christian Bale - preciso dizer que ele irá bater de frente com os patrões? Carismático por sua postura e os trejeitos expansivos, Bale é de longe o melhor do elenco, desde já se credenciando para as premiações de fim de ano. Méritos também para os aspectos técnicos, do potente som à fotografia que busca ângulos inusitados, durante as cenas de corrida. De negativo, fica a insistência no clichê da ultrapassagem vitoriosa quase na linha de chegada - por mais que seja bem executada - e na personificação dos problemas empresariais em uma única pessoa, um facilitador de roteiro bastante conveniente.

Ford vs Ferrari é um filme robusto que tem muito a dizer, ideologicamente falando, ao mesmo tempo em que entrega com extrema competência técnica os bastidores da história real de quando a Ford "foi à guerra na Europa", como diz seu presidente ao aprovar a entrada da montadora no universo das corridas. O termo guerra, inclusive, não foi por acaso: o objetivo aqui jamais foi competir, mas sim derrotar seus adversários. Nada mais contraditório à essência do esporte.

Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.