Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
La Cordillera de los Sueños

A geografia da ditadura, de novo

por Bruno Carmelo

Desde 2010, o veterano chileno Patricio Guzmán tem proposto uma curiosa articulação documental entre a geografia de seu país e a ditadura de Pinochet. Nostalgia da Luz efetuava conexões improváveis, e muito belas, entre o céu chileno e os mortos do governo militar. Depois, O Botão de Pérola decepcionou ao repetir o procedimento em variação mínima: desta vez, eram as águas locais que dialogavam com os povos indígenas e os prisioneiros políticos. Agora, conclui a trilogia com mais uma incursão na geografia política, ou política geográfica, combinando a Cordilheira dos Andes com imagens de censura, tortura e brutalidade policial durante os anos Pinochet.

Os traços estéticos dos filmes anteriores se mantêm: Guzmán fornece a narração em off, em tom ex-tre-ma-men-te pau-sa-do, combinando lembranças pessoais com dados históricos. As imagens equilibram planos aéreos da cordilheira com imagens de arquivo sobre manifestações de rua e prisões arbitrárias por parte dos policiais militares. No entanto, até chegar ao cerne da discussão política, o diretor propõe ao espectador vinte exasperantes minutos de ode à paisagem. Escritores e escultores falam sobre a beleza das montanhas, seus mistérios e suas possíveis interpretações. Eles elogiam seu vento, seus pássaros, a grama, os “montículos verdes”. A cordilheira protege e segrega, domina e é dominada. O segmento inicial mistura passeio turístico e palestra informativa.

Felizmente, a discussão política eleva o nível do documentário. Conversando com poucos amigos próximos, porém muito articulados e reflexivos, o diretor traz ideias pertinentes sobre as causas e consequências do golpe militar, relembrando a insurgência do povo, o medo imaginário contra a esquerda, a arbitrariedade dos ataques, as diferentes formas de resistência. Talvez as imagens da época e os discursos tragam poucas novidades fatuais, e não forneçam um ponto de vista diferente sobre o episódio fartamente documentado e discutido. Mesmo assim, Guzmán acredita na importância de insistir nos acontecimentos passados para que as novas gerações não se esqueçam deste “fenômeno (o golpe militar) que pode estar se tornando planetário”. A abordagem é louvável em sua vertente humanista e política.

No entanto, a conexão entre a geografia e a História resulta bastante frágil. “Se as pedras das cordilheiras pudessem falar, falariam sobre o sangue derramado”, dispara a narração num gesto quase, ainda que vazio no que diz respeito aos significados. A Cordilheira dos Sonhos está repleto de frases poéticas sobre a paisagem chilena, porém Guzmán não consegue conectar efetivamente suas duas esferas paralelas, como havia feito de modo mais orgânico nos filmes anteriores. A cordilheira e a ditadura fazem parte de um mesmo imaginário nacional, no entanto esta associação é vaga demais para sustentar uma tese de pretensão analítica.

De fato, este é o filme mais fraco da trilogia - o menos inventivo e também menos esclarecedor dos três. O cineasta se contentou com a reprodução de seu próprio mecanismo, perdendo não apenas o aspecto da surpresa mas também a ambição estética. Afinal, os múltiplos planos aéreos soam impessoais, genéricos. É indispensável que se continue a discutir os horrores da ditadura, especialmente em tempos negacionistas. Entretanto, o cinema precisa explorar suas ferramentas de linguagem de modo a provocar, a questionar, a articular novas imagens e novos discursos, propondo fissuras, releituras, metáforas. A Cordilheira dos Sonhos corre o risco de pregar a convertidos, sem incomodar quem quer que seja.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.