Anti-James Stewart
por Renato FurtadoLogo após constatar o que já era óbvio, apesar de ter negado a crua verdade dos mais de 100 quilos de cocaína que dividem o porta-malas de sua picape com um carregamento de nozes-pecã quase que inconscientemente, Earl Stone (Clint Eastwood) toma ciência completa da profundidade de seu dilema quando encontra o seu primeiro impasse policial. E, para piorar, com direito a um cachorro treinado para farejar narcóticos e tudo, evidentemente. Mas como bom malandro e manipulador indivíduo que é, o floricultor transformado em mula de um cartel de drogas mexicano consegue se desvencilhar do imbróglio.
Porque se há algo que A Mula, mais novo drama de Eastwood, não consegue fazer, a despeito de sua competência técnica, é esconder que seu protagonista é, no fundo de seu íntimo, um sujeito de má índole. O que, de fato, não é um problema em si, pelo menos não para o cinema: a sétima arte é povoada por tipos de moral duvidosa, para dizer o mínimo. Assim, esse incômodo gerado não passa pelas ações ou pela ética de Stone, mas sim e tão somente no fato de que A Mula, através de um emaranhado de trepidantes e irregulares mudanças tonais a cada passo dado, tenta mesmo nos vender a bondade de seu protagonista.
A inevitável falha crítica da empreitada anuncia-se de pronto quando o roteiro, escrito por Nick Schenck (Gran Torino) com base na história real de Leo Sharp, um dos maiores traficantes de todos os tempos, intenta estabelecer um utópico paralelo entre as personas de James Stewart e de Eastwood. Ora, basta conhecer um mínimo da carreira da estrela de Um Corpo que Cai para enxergar a impossibilidade do projeto: o primeiro é o arquétipo do homem bom, que luta para reverter as crises que atravessa e surgir como um herói agridoce no fim; o outro é o Homem Sem Nome, pistoleiro de sangue frio.
Portanto, por mais que todos os personagens secundários que Earl encontra em seu caminho como transportador de cocaína se esforcem para nos convencer das semelhanças entre as essências dos dois astros, esta é uma tarefa fadada ao fracasso. Até porque, em termos de construção de personagem, recebemos muito pouco incentivo para acreditar, de forma maniqueísta, na bondade do protagonista de A Mula. Porque, no fim das contas, o floricultor é, sim, alguém que errou, que recorreu ao transporte de drogas para tentar recuperar sua casa e que, invariavelmente, contribuiu para a indústria do narcotráfico.
O roteiro, por sua vez, complexifica ainda mais a pretensão de redenção de seu protagonista quando o apresenta, para começo de conversa, como um péssimo pai e péssimo marido, como um homem que abandonou a família por causa do trabalho. Toda a subtrama que envolve os personagens das subaproveitadas Dianne Wiest e Taissa Farmiga, respectivamente ex-mulher e neta de Earl, é completamente dispensável, e não só não auxilia o arco narrativo do personagem, como também o prejudica. Entre perseguições policiais e dramas íntimos, a trama de A Mula fica abarrotada.
Eastwood, que jamais foi um realizador chegado às sutilezas, perde a mão por completo ao tentar criar uma transição entre um filme de estrada, um suspense criminal, um drama familiar e uma muito deslocada comédia. Ao não aceitar apenas um dos registros narrativos — ao não aceitar, em outras palavras, a natureza de thriller do projeto, escanteando as sólidas e cativantes performances dos agentes interpretados por Bradley Cooper e Michael Peña —, o realizador dá mostras de que os dias de Gran Torino, filme com mais afinidade temática com este A Mula, estão definitivamente no passado.
Este descompasso, aliás, só aprofunda a decepção causada por este híbrido, que arranca risadas nas horas erradas — as cenas em que Earl interrompe seu caminho para dar conselhos automobilísticos para uma família negra e para um grupo de motociclistas lésbicas são constrangedoras e preconceituosas, a despeito das "boas intenções" de ambas as sequências em tratar o personagem como um idoso tolerante. Porque Eastwood não perdeu o ritmo e a capacidade de conduzir um longa: apesar de todos os pesares, A Mula funciona e, de um ponto de vista puramente técnico, não comete nenhum erro.
A montagem e a fotografia tratam de conferir o visual e o andamento corretos para a produção, enquanto todo o elenco de apoio, completado por nomes como Andy Garcia e Laurence Fishburne, faz o possível para salvar a empreitada. E esta a questão: se não fossem os problemas éticos da obra — Eastwood não parece compreender, por exemplo, que Earl é um criminoso, independentemente de suas motivações, ao tentar transformá-lo em um herói —, o projeto não precisaria ser resgatado de si mesmo. Mas tudo que A Mula quer é nos fazer simpatizar com um vilão sem jamais observá-lo com o mínimo de senso crítico.
Todo bom antagonista que se preze deve encantar, em certa medida, a audiência: são os seus meios questionáveis que nos afastam e nos repelem, mas são suas intenções fundamentalmente genuínas e compreensíveis que nos atraem. No caso de Earl, por outro lado, essa ambiguidade não é construída: o roteiro conta que iremos simplesmente ter consideração e empatia pelo protagonista pelo fato do idoso ser uma vítima das circunstâncias — algo que ele, claramente, não é. Aliás, Eastwood, esse modelo de caubói vingador, precisaria se esforçar muito mais como ator para nos convencer de que é meramente indefeso.
Pontuado por uma obsessão inexplicável por celulares e diálogos expositivos e didáticos demais, A Mula soa como uma espécie de tentativa de seu astro e diretor de redimir os crimes de Blondie, o protagonista da Trilogia dos Dólares de Sergio Leone. É como se Eastwood estivesse tentando provar que seus críticos estão errados e que suas ideias mudaram. Contudo, a visão de mundo do realizador parece permanecer intacta, ainda que mascarada, como a insana cena da festa no México comprova: no fim das contas, tudo está igual. Ele pode reconhecer que errou, mas não pode ser mais que um rascunho de James Stewart.
E tudo bem, porque Eastwood é Eastwood, a despeito das problemáticas declarações de sua vida pessoal: ele é um astro de Hollywood e não precisa tentar ser o que não é, especialmente por ser fundamentalmente o anti-James Stewart. Para exercer suas habilidades como cineasta ao máximo, o ator precisa de um roteiro minimamente sólido, e a história de Leo Sharp possuía todas as potencialidades para tal. Aqui, entretanto, o responsável por obras como Sobre Meninos e Lobos, Os Imperdoáveis e Menina de Ouro se perdeu por completo. A Mula é, provavelmente, um dos piores filmes de Eastwood.