Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Um Lindo Dia na Vizinhança

O enigma do herói

por Sarah Lyra

Já nos segundos iniciais de Um Lindo Dia na Vizinhança, enquanto assistimos ao programa infantil de TV do aclamado Fred Rogers, é inevitável pensar como Tom Hanks, seu intérprete aqui, parece ter nascido para o papel. É sabido que o ator tem preferência por personagens bondosos e heróicos, mas no longa de Marielle Heller essa característica vai além, retratando o apresentador quase como uma divindade. Felizmente, o status de ser humano elevado é questionado a todo instante pelo jornalista investigativo Lloyd Vogel (Matthew Rhys), e a partir do encontro entre a modéstia de um com o cinismo do outro o filme provoca discussões sobre convívio em sociedade, rancor e perdão.

É interessante ver como Heller assume o didatismo na montagem e roteiro para comunicar a habilidade e o prazer de Rogers em ensinar. Por isso, o que normalmente pareceria excessivamente explicativo, aqui faz sentido por se tratar de um programa infantil e ao mesmo tempo servir como caracterização de uma figura tão diferenciada que se torna um enigma. A diretora brinca com as percepções do público em relação ao homem e seu modo de enxergar o mundo, ao passo que se torna inevitável não se identificar com a inquietação de Vogel. Afinal, é possível que alguém seja tão bom o tempo todo? Há alguma farsa a ser desmascarada? Trata-se de uma persona pública que se confunde à vida pessoal ou talvez uma atuação constante? A resposta nunca vem ao certo, e Heller desafia o espectador a rever suas próprias convicções para entender as de Rogers.

Paralelamente, o roteiro explora o drama da família Vogel como se fosse um dos episódios do programa apresentado por Rogers. Para isso, emprega planos aéreos que nos conduzem pelos quarteirões da vizinhança de Lloyd, enquanto ilustra a movimentação entre diferentes pontos através das miniaturas coloridas usadas no cenário do programa. Um recurso de linguagem também elegantemente empregado por Heller é o da cena em que Sr. Rogers desafia Lloyd a ficar em silêncio por um minuto e pensar em todas as pessoas que tiveram influência em sua formação como pessoa. A cena é simples mas tocante por algumas decisões de Heller.

Primeiro, porque realmente dedica um minuto inteiro de projeção a esse momento, em vez de apenas sugerir a passagem do tempo, como normalmente é feito na montagem. E segundo porque não apenas permite, mas instiga o espectador a fazer o mesmo exercício que o protagonista. Quem não pensou em sequer uma pessoa que moldou seu caráter durante a brecha dada pelo filme? E a quebra sutil da quarta parede por parte de Hanks revela claramente a intenção de Heller em elevar o espectador do longa a um espectador de Rogers.

Além do aspecto pedagógico e educativo, há também um elemento de autoajuda nas lições do apresentador, mas que não necessariamente se convertem em uma tentativa de doutrinação, tampouco é passado de modo condescendente. Heller é eficiente ao humanizar e tornar acessível a figura do herói, principalmente quando reforça que o comportamento de Rogers é fruto de uma determinação diária de fazer o bem e aprender a lidar com frustrações e tristezas.

O roteiro de Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster, embora cuidadoso ao estabelecer as relações afetivas, peca ao simplificar algumas questões importantes. Usar a morte como meio de aproximação entre entes que há anos não se falam não é exatamente inovador, e Heller pouco se aprofunda nas dinâmicas que poderiam diferenciar o drama familiar. Exemplo disso é o fato de as personagens femininas atuarem estritamente em função dos três homens que movimentam a trama — Fred, Lloyd e Jerry (Chris Cooper). Lorraine (Tammy Blanchard) parece não se importar em ser constantemente tratada como piada por estar em seu terceiro casamento, e Joanne Rogers (Maryann Plunkett) surge apenas para dar algumas pistas sobre o temperamento do marido

À Andrea Vogel (Susan Kelechi Watson) só cabe o papel de esposa compreensiva, que está ali para atender às demandas emocionais do marido e impulsioná-lo a ser sua melhor versão — algo não muito diferente do que é visto no papel que interpreta na série This Is Us. É ainda mais sintomático que Lloyd esteja sempre a postos para soar correto enquanto explica ao pai conservador que a criação de um filho não é obrigação exclusiva da mulher, ou quando ressalta a carreira de Andrea quando esta é chamada de “boneca” pelo sogro. Na prática, porém, o protagonista reforça comportamentos machistas ao sempre colocar a esposa na posição de dedicar muito mais tempo ao filho do que ele mesmo consegue, já que o trabalho na revista é sempre sua prioridade. Até mesmo a discussão no hospital, quando Lloyd diz que a paternidade o desafia a perder interesse pelas coisas sempre o interessaram, não vai muito além na questão.

Diante do que é mostrado, Rhys pode até ser o protagonista, mas é Hanks quem sustenta a trama com o carisma enigmático de Fred Rogers e uma atuação em que as duas grandes personalidades se confundem.

Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.