Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Encontros e Desencantos

O desgaste de um relacionamento

por Bruno Carmelo

Desde a cena inicial, conhecemos Mika (Fanni Metelius) e Tesfay (Ahmed Berhan). Pelos olhares trocados entre ambos, e pela direção que insiste em destacá-los num grupo de amigos, sabemos que vão se conhecer, se aproximar e ficar juntos. Os 100 minutos de duração do drama são inteiramente dedicados ao relacionamento entre o casal. Os poucos amigos e familiares, quando aparecem, servem para aconselhá-los sobre suas angústias afetivas. O trabalho dela como fotógrafa é mencionado apenas sugerir uma atividade praticada quando tenta não pensar no namorado. O Coração é um filme irremediavelmente romântico, fazendo da história de amor seu ponto de partida e seu objetivo final.

A trajetória de Mika e Tesfay é tão realista quanto banal: eles se apaixonam, mudam-se para a mesma casa, a libido diminui, surgem as primeiras tensões, as incertezas, a dúvida sobre o futuro juntos. Eles pensam em separar, mas ainda se amam. Metelius, também diretora do projeto, capta bons momentos cotidianos de intimidade, além de trazer diálogos realistas e desenvolver os desejos do casal em profundidade. Embora os personagens coadjuvantes soem rasos, os dois principais são tridimensionais. Os conflitos do casal – e do filme, por extensão – decorrem de desavenças internas naturais à convivência, ao invés de alguma reviravolta externa (traições, mentiras etc.). A diretora sabe tratar a ruína de um relacionamento sem recorrer ao espetáculo das brigas barulhentas, sempre tão tentadoras no audiovisual.

No entanto, o drama é prejudicado pela direção impessoal. Metelius recorre a imagens funcionais e protocolares, a exemplo dos planos e contraplanos durante uma conversa e dos atores posicionados no meio do quadro. Além disso, a câmera excessivamente tremida soa como maneirismo, já que o recurso não produz qualquer dinamismo ou senso de urgência. Treme-se a câmera porque esta parece ser a cartilha de bom gosto do cinema indie na intenção de produzir um sentimento de liberdade ironicamente padronizado. Paralelamente, a representação do sexo deixa a desejar: para uma trama que gira tanto em torno da frequência e intensidade sexual, as cenas de sexo são pudicas, discretas e curtas. Metelius tem mais coragem de mostrar o próprio corpo do que aquele de seu parceiro de cena, ainda que ambos sejam poupados pela câmera e pela montagem.

Se a cineasta demonstra um trabalho de pouca personalidade, ao menos entrega uma atuação irrepreensível. As inseguranças de Mika ao longo dos anos são muito bem trabalhadas em expressões, postura corporal e entonações pela atriz. Berhan também fornece um jogo à altura, e o mesmo vale para o elenco de apoio, desenvolto em seus papéis. Existe um teor de despojamento muito bem-vindo a uma história que se pretende jovem e avessa a moralismos. De fato, o filme discute de modo natural o feminismo e a possibilidade de uma mulher ser feliz sem estar num relacionamento. O roteiro trata tanto da carência quanto da emancipação de Mika, e neste sentido a conclusão se revela particularmente comovente.

Talvez O Coração não seja um projeto muito memorável – na busca por retratar o banal a qualquer preço, a direção perde a chance de fornecer algo que torne aquele casal especial. Seria ótimo conhecer um pouco mais de Mika e Tesfay fora do âmbito amoroso, sobretudo o trabalho musical deste último, ignorado na trama. Entretanto, no que diz respeito às turbulências do sentimento amoroso, o resultado transparece uma ambição psicológica louvável. Aos 31 anos de idade, em seu primeiro longa-metragem, Metelius se mostra uma diretora promissora.

Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.