Garotos com uniforme e uma arma na mão
por Bruno CarmeloComo era a rotina de um soldado britânico durante a Primeira Guerra Mundial? Quando não estava atirando ou fugindo da artilharia alheia, como eram as refeições, as amizades? Como faziam para ir ao banheiro ou comer durante a guerra, e onde dormiam? Qual era o cheiro dos cadáveres, a textura dos fuzis, o barulho das explosões? De que maneira estes jovens, muitos deles menores de idade, foram recrutados, e o que pensavam do combate, da pátria, da guerra? Que lembranças carregaram décadas mais tarde? Após tantas (re)visões históricas de ordem verbal, focadas na sucessão de fatos, o diretor Peter Jackson traz uma visão substantiva dos acontecimentos.
O cineasta se mostra mais preocupado em colecionar impressões e lembranças do que recorrer à construção de uma “verdade”. Para adotar um ponto de vista assumidamente subjetivo, ele recorre a testemunhos sonoros de dezenas de combatentes, hoje idosos, sobrepostos a gravações de época, além de propagandas e fotografias animadas. A curiosa relação entre som e imagem evita a redundância comum a tantos projetos didáticos: enquanto os homens narram as suas anedotas e sentimentos (a primeira vez em que vestiram o uniforme, o prazer em acatar ordens de superiores por se sentirem parte de algo importante), as cenas evocam os rapazes felizes, os grupos treinando, a geografia das trincheiras. O material sonoro e o material imagético se comentam, se retroalimentam sem se repetir, graças a uma pesquisa aprofundada deste período.
Outro aspecto que chama a atenção é a construção técnica. Eles Não Envelhecerão (título tão cândido quanto irônico, pela narração de idosos que, durante a juventude, jamais acreditariam sobreviver à batalha) se inicia com uma tela quadrada e bordas arredondadas, em referência à captação em preto e branco do material de origem. A textura da película, gasta e granulada, corresponde a um imaginário de antiguidade, de passado desconectado dos nossos tempos e da nossa experiência audiovisual. O segmento inicial respeita a natureza do material de origem para indicar em que condição se encontra, e para demarcar este abismo temporal e cultural de cem anos. Entramos neste terreno por um olhar externo e frio.
No entanto, para a nossa surpresa, o enquadramento se abre, lentamente, até se transformar num widescreen, que subitamente ganha cores vivas, vídeos com imagens próximas dos rostos e movimentos de cada soldado, dos corpos nas trincheiras, das bombas, dos feridos nas macas. Os registros, agora coloridos, com close-ups e montagem ágil, tornam-se imediatamente próximos de uma vivência mais contemporânea. Diante daqueles rostos, some a ideia de uma coletividade anônima e se percebem personalidades, individualidades. Enquanto as histórias dos ex-combatentes tratam de retirar da guerra a sua glória e seu fetiche, a imagem se concentra no dia a dia, nos períodos de espera e nas brincadeiras durante os intervalos das batalhas.
Descobrimos figuras de jovens sem qualquer formação política, sem real orientação sobre seus papéis naquele contexto, aplicando-se como podiam, em situações precárias. A riqueza do material e a beleza das imagens é impressionante, enquanto a montagem trata de desenhar uma discreta linha narrativa, que vai do alistamento militar até o fim da guerra e o retorno à vida comum – quando as imagens ganham, novamente, seu formato quadrado, em preto e branco, na tela pequena, como se se despedissem de nós. A transformação das imagens, sua mutabilidade e manipulação tornam-se aspectos interessantíssimos para algo que se considera estático por natureza: o passado, os fatos, especialmente em se tratando de um episódio tão documentado quanto a Primeira Guerra Mundial. Jackson resgata a dinâmica das imagens e dos homens cujos olhares nos interpelam diretamente.
Se existe algum porém na produção, ele se encontra na verborragia: os concisos 90 minutos de Eles Não Envelhecerão são marcados por depoimentos ininterruptos, sem um segundo de descanso sequer entre o fim de uma fala e o início do testemunho seguinte. O ritmo é tão veloz quanto extenuante: existe um volume de informações, de relatos e experiências que não permite a contemplação do espectador. Mesmo assim, o resultado é uma obra ousada em termos estéticos e apaixonante por seus depoimentos naturalistas. Jackson rompe com a aura fria das narrativas históricas para propor uma conversa jovial com participantes da guerra, nas quais qualquer fato é digno de ser narrado, em tom de claro distanciamento sobre o tempo passado.