Fabricando traumas
por Bruno CarmeloÉ ótimo encontrar no cinema uma investigação tão complexa da psicologia infantil quanto aquela proposta em Nós, os Animais. Enquanto uma parte considerável das produções voltadas às crianças limita-as a consumidoras de estímulos efêmeros (“Criança gosta de filme colorido e com mensagens bonitas”), esta produção adulta interpreta a experiência infantil de maneira dolorosa, violenta, pelo enfrentamento de situações com as quais ainda a criança ainda tem condições de lidar. Este seria um período de formação, mas também de choque de uma personalidade particular com as regras codificadas da sociedade.
O símbolo destas descobertas é Jonah (Evan Rosado), que acaba de completar dez anos de idade. Ele é o mais novo de três irmãos com idades muito próximas. O garoto presencia o pai pular entre diversos subempregos, embora ainda não compreenda a noção de pobreza; presencia a mãe ser agredida, embora não saiba a definição de abuso doméstico; é tratado como estrangeiro por seu tom de pele, ainda que desconheça o termo racismo; passa a ter curiosidade e interesse por um vizinho loiro mais velho, mesmo se entender o que é a homossexualidade. Para Jonah, tudo é novo, simultaneamente fascinante e amedrontador.
O diretor Jeremiah Zagar retrata este momento com notável potência. Utilizando a câmera na mão e resgatando a textura granulada da película, ele imerge num cinema sensorial, do tipo que se esforça em captar os raios de sol atravessando a janela, um mosquito pousando sobre a pele dos personagens, os sons das ruas e dos cômodos vizinhos. O corpo ganha um tratamento natural e intenso: além dos garotos prestes a entrarem na puberdade, os pais expõem os corpos ao sexo, à dança, às agressões, aos abraços, à água do lago e à lama do quintal. Nesta relação instintiva com a natureza se encontra a metáfora animalesca do título, como se todos fôssemos bichos em busca de autodefesa e da defesa daqueles que amamos. “Nós nunca conseguiremos fugir disso”, lamenta o pai diante da miséria permanente. Por isso, esgota-se fisicamente na sobrevivência diária.
O ponto de vista coincide com o olhar das crianças, e de Jonah em particular: o que o garoto não enxerga, o público também não vê, ainda que seja capaz de deduzir muitas informações. A predileção pela compreensão infantil justifica as metáforas simples e bem trabalhadas, como os desenhos perturbadores do protagonista, seu desejo de voar como um pássaro ou mesmo a certeza mórbida de que o buraco cavado no quintal corresponde a um túmulo feito para ele. A dureza da vida de mulheres, negros, imigrantes e gays é retratada de modo orgânico e poético. Existe tanto amor quanto raiva naquela família – são particularmente belas as cenas em que os garotos se protegem durante a agressão do pai, ou quando tentam alegrá-lo dentro do caminhão após perder o emprego.
Se existe um porém neste banquete de imagens é o temor de que Zagar transforme Nós, os Animais num exercício tão estilizado que beire a vaidade, a forma pela forma. Algumas cenas se aproximam perigosamente do videoclipe, com ecos formalistas de Terrence Malick, Spike Jonze e Michel Gondry. Felizmente, os maneirismos não tomam controle da narrativa, e o fator humano se sobrepõe. As atuações precisas de Raul Castillo e Sheila Vand, assim como o excelente trabalho efetuado com os atores mirins, coroam o resultado de uma direção excepcional em sua capacidade de esculpir pessoas, espaços, imagens e ritmos, com um refinamento e uma visão política exemplares.
Filme visto no 26º Festival Mix Brasil da Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.