Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Platamama

O caso do filme errado

por Bruno Carmelo

O nascimento do cinema, em relação ao teatro, trazia a promessa de um registro fiel e reprodutível da arte: ao contrário da encenação nos palcos, que poderia mudar a cada noite, a exibição de cinema seria a mesma para todos, porque o filme não sofreria alterações de cópia para cópia. Deste modo, todos os espectadores, em diferentes salas e partes do mundo, teriam uma experiência idêntica. Hoje se sabe que este ponto de partida é ilusório: a percepção do filme muda bastante se a pessoa estiver imersa no espaço escuro da sala de cinema ou no sofá de casa, com as luzes acesas e o telefone celular na mão; se estiver diante de uma televisão ou de uma tela gigante; se estiver assistindo em qualidade 360p ou 4K. Muda, também, se assistir ao filme com legendas ou não.

Este foi o caso da exibição de Platamama durante o Festival Latino-Americano de São Paulo. O documentário sobre uma família de bolivianos no Brasil, falado inteiramente em espanhol, foi exibido sem legendas ao público. Algumas pessoas se levantaram e reclamaram da falta do texto em português. Os organizadores do festival não sabiam da possível existência de outra cópia, e nenhum membro da equipe estava presente para elucidar a questão. Formulou-se coletivamente a seguinte tese: esta seria a proposta estética da diretora Alice Riff. Quem entendesse, ótimo; quem não compreendesse bem o espanhol, teria a sensação de não pertencer àquele meio. Uma decisão conceitual, um projeto instigante sobre o significado de ser estrangeiro, de se encontrar num meio ao qual não pertence. “É assim mesmo, senhores, vamos continuar a sessão”. Muitos voltaram, se sentaram, e assistiram até o final. O que cada um teria entendido das intensas trocas verbais entre marido, esposa e mãe é segredo pessoal. 

Mais tarde, descobriu-se que as legendas deveriam estar presentes. Foi uma falha, um problema de comunicação. Este fato desarma completamente a tese do filme-experimento visando reproduzir no espectador o distanciamento social e crítico. No entanto, tal obra conceitual, ainda que inexistente enquanto intenção artística, é o projeto que chegou aos olhos de dezenas de pessoas. Pode-se supor a sensação de assistir ao filme com legendas – o que representaria, sem dúvida, uma sessão mais tradicional, linear, e chamaria menos atenção ao som enquanto protagonista -, mas ela não foi vivida. Resta a este texto a tarefa ingrata de discorrer sobre um filme que não se viu, ou sobre um filme que não existe. A vivência dentro daquela sala do Festival Latino-Americano provavelmente não se repetirá para novas plateias. Escreve-se, portanto, para leitor nenhum, ou para o leitor de uma ilusão particular, o leitor das miragens alheias – o que talvez resuma, em última instância, a comunicação em toda crítica de cinema. Tentemos discorrer, então, sobre o filme-espectro.

Platamama se abre com longos letreiros explicativos sobre a imigração de bolivianos em diversas partes do mundo devido à crise financeira. Pelo baixo nível de instrução, veem-se obrigados a aceitar trabalhos mal pagos, especialmente na indústria têxtil. Partindo da contextualização macro, a câmera mergulha no cotidiano de uma única família de bolivianos em São Paulo. Não se sabe o porquê de este ter sido o único núcleo escolhido, nem a razão de ele ser considerado representativo de todos os demais – afinal, os letreiros iniciais permitem a leitura desta família enquanto “caso exemplar”. Tampouco se sabe por que a câmera se recusa a sair nas ruas, acompanhar os personagens interagindo com brasileiros. Permanecemos durante praticamente toda a narrativa dentro da casa, onde os familiares costuram, cozinham, comem, brincam com o bebê. Exceto por algumas cenas pontuais, a trama poderia se passar dentro de uma casa boliviana, na Bolívia. Cria-se um filme sobre estrangeiros, apenas para retirar deles a condição de estrangeiros – a alteridade, a barreira da língua, os obstáculos administrativos, a fusão de culturas.

Do mesmo modo, o foco inicial, que se promete voltado ao trabalho explorador e mal remunerado, se torna secundário. A atividade da costura, executada pela mãe, não é retratada como uma função particularmente exaustiva, embora as imagens de lojas de roupas, vistas através da janela de um ônibus, acenem à perversa cadeia produtiva. O roteiro elege como protagonista o genro, aquele que menos costura, e sonha em se profissionalizar na carreira de músico, onde atende pelo nome Choquito Sensual. Logo, este é um filme sobre estrangeiros que lhes retira o estrangeirismo, um filme sobre o trabalho forçado que retira o trabalho de foco, um filme sobre espaços (fábricas, países, deslocamentos) que se fecha em poucos cômodos, um filme sobre o tempo (a contemporaneidade, a evolução da penúria econômica) que se constrói, através da montagem elíptica, em estrutura quase atemporal.

Platamama é uma obra de curiosa construção conceitual, como se sabotasse a si própria. O documentário teria imenso potencial humanista, sociológico, histórico, político. Mas talvez, diante deste peso discursivo, prefira observar candidamente os membros da família na cozinha, na sala e sentados à mesa, em discretos planos fixos, com a iluminação pouco contrastada e cores lavadas – que talvez representem o cansaço, o desgaste daquela vida sem intensidade, o rebaixamento estético dos vestidos produzidos em nome de maior quantidade e lucro; ou então correspondam apenas a uma criação pouco apurada da direção de fotografia, vai saber. O filme se revela tão poroso em sua abordagem que poderia ser defendido igualmente enquanto minimalismo metonímico ou enquanto proposta superficial, insuficiente diante da complexidade do tema.

E pensar que nasceu, desta projeção errada, a possibilidade de um filme em que as imagens falariam por conta própria, em detrimento do som, transformado ao mesmo tempo em protagonista e ruído, em discurso e trilha sonora para os gestos da máquina de costura, dos cuidados com o bebê, de lavar a louça. Seria um filme sobre o som em oposição à imagem, sobre a fala enquanto retórica, sobre a invisibilidade dos bolivianos, incompreendidos num país alheio. Seria uma obra de provocação, capaz de confrontar o espectador em sua necessidade de compreender tudo, de ser alimentado com informações ao invés de sensações, especialmente dentro do formato documentário, que se supõe popularmente didático. Seria um filme feito não para o espectador, mas apesar dele; assim como a presença dos bolivianos, que não precisariam de nossa permissão para existirem neste espaço.

Seria um filme de estranhamento tão grande que até chamaria atenção à feiura dos letreiros em Times New Roman – e algo ainda pode parecer profissional, escrito em Times New Roman? A tipografia visaria evocar a simplicidade da vida e do trabalho dos bolivianos? Enfim, esta experiência concreta, partindo de um filme imaginário, serve para comprovar tanto a possibilidade de o crítico delirar a partir de uma obra, atribuindo-lhe qualidades e discursos que não venham da própria, quanto de reforçar a ideia de que ninguém assiste ao mesmo filme. Isso vale para todas aquelas pessoas dentro da sala de cinema, na mesma fatídica sessão sem legendas. O Platamama que vimos foi apenas nosso, e discorrer sobre ele talvez corresponda à tarefa mais absurda e mais necessária que tenhamos a fazer.

Filme visto no 14º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2019.