Adultos irresponsáveis
por Bruno CarmeloNo papel, este drama francês constitui uma pequena brincadeira em família. O cineasta Stéphane Demoustier dirige os dois filhos, Cléo e Paul, de dois anos e meio e três anos e meio na época das filmagens. A trama é simplíssima: as crianças se perdem da babá idosa num grande parque parisiense, e passam a perambular sem rumo. Amedrontados a princípio, eles exploram o local, brincam com outras crianças e conhecem adultos dispostos a ajudá-los. O início prenuncia uma curta aventura inconsequente, capaz de colocar sorrisos no rosto de todos os envolvidos sem realmente transformar a vida de quem quer que seja – em outras palavras, um breve respiro à vida cotidiana.
Entretanto, Demoustier descarta a leveza para fornecer caminhos mais sombrios à trama. Em um ambiente paranoico com a segurança, o roteiro passa a sugerir a presença de pedófilos e sequestradores. Além disso, desconstrói a imagem dos adultos gentis no caminho das crianças: a babá amorosa se cansa de procurar pela garotinha perdida e abandona também o menino, partindo do parque de modo abrupto, e a jovem Louise (Vimala Pons), que acolhe Cléo à espera dos pais da menina, é acometida pelo súbito desejo de guardar a menina para si. Ninguém pensa em chamar a polícia ou ir à delegacia. Nesta França perigosa, todos agem de modo absurdamente irresponsável.
Se não fosse pelas atitudes inverossímeis dos adultos – vide o péssimo reencontro com um ex-namorado encarnado por Anders Danielsen Lie -, Cléo e Paul seria um belo curta-metragem. A narrativa estica-se para chegar à duração mínima do longa-metragem, mesmo que para isso comprometa a verossimilhança e ofereça uma visão de mundo no mínimo questionável. Afinal, todos os perigos enfrentados pelas crianças são vistos como mera banalidade, um percalço rumo ao inevitável encontro com algum adulto gentil, e da menina com seu irmão. Em outras palavras, o cineasta ainda trata este cenário assustador com uma aura de feel good movie, com direito a trilha sonora enérgica e eletrônica, além das brincadeiras inocentes de Cléo e dos jogos impulsivos de Paul.
O problema se encontra em reduzir a infância à máxima pureza, ao passo que se limita os adultos a uma série de sujeitos desequilibrados. Algum psicanalista deveria analisar as implicações de um pai criar uma ficção em que seus próprios filhos são abandonados ao alcance de pedófilos e sequestradores. Pobres crianças, quando assistirem ao filme anos mais tarde... É uma pena que o drama se livre à fábula da ovelha entre os lobos, porque a utilização da linguagem cinematográfica se revela muito interessante. Demoustier consegue representar os gestos impensados da infância com uma câmera livre, próxima o bastante para captar detalhes, mas distante o suficiente para que não se sintam intimidados pelo aparato cinematográfico. O trabalho de fotografia e som é tão preciso quanto despojado, o que seria ideal para um pequeno road movie dos irmãos pela cidade afora.
Talvez Cléo e Paul deva ser lido como uma cautionary tale – a fábula sobre os perigos da infância em relação ao mundo adulto. O filme remete aos contos infantis, um tanto cruéis e perversos em suas sugestões, guardando boas semelhanças com João e Maria ou Chapeuzinho Vermelho – nas versões originais, repletas de morte e sangue, e não nas versões edulcoradas da Disney. Aos pais, sugere-se atenção máxima com seus pequenos, já que o mundo está repleto de pessoas doentias. Às crianças, ensina-se que nunca confiem em ninguém. Quem diria que a pequena aventura familiar, numa tarde ensolarada, terminaria com um gosto tão amargo.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.