Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Aeroporto Central

Humanismo discreto

por Bruno Carmelo

Inicialmente, o local mencionado no título é analisado por sua trajetória histórica. A câmera percorre o aeroporto Tempelhof ao lado de turistas, enquanto uma guia descreve os motivos que levaram à interrupção das atividades. Após conhecermos o aeroporto como tal, descobrimos que o gigantesco hangar foi transformado em centro de refugiados. Avesso a uma leitura jornalística, o projeto não fornece dados sobre a quantidade de pessoas habitando aquele espaço, o tempo médio de permanência, nem os recursos deslocados para a manutenção.

O potencial estético do Tempelhof certamente foi um motivo essencial para a concretização do filme. A narrativa dedica metade de sua duração à parte externa do hangar, ao invés de dentro do galpão, com os refugiados. Ao longo de um ano, o diretor Karim Aïnouz capta a mudança das estações, a bruma na noite, a sensação de vazio das pistas imensas, o uso dos gramados por turistas e moradores locais, a prática de esportes. O cineasta sempre demonstrou talento para composições e a exploração de ambientes. Neste caso, tem material de sobre para trabalhar. O espaço torna-se um personagem tão importante quanto seus habitantes.

Outro claro interesse diz respeito à representação da vida dos refugiados, a maioria de origem síria, iraquiana e afegã. Diversos projetos recentes (Human Flow, Exodus) se dedicaram a temas semelhantes, porém em vertente alarmista, buscando sensibilizar o espectador e informá-lo sobre uma situação grave que se supõe desconhecida pelo público médio. Aeroporto Central não possui a mesma pretensão. O diretor não revela mais do que os personagens escolhem mostrar por si próprios. No caso, elege um personagem principal, o jovem Ibrahim, acompanhando-o até os últimos momentos de sua permanência no THF. Outro personagem, Qutaiba, representa uma situação distinta por ser mais velho, mais experiente - trata-se de um médico com anos de prática - enfrentando maiores dificuldades para regularizar a sua situação diplomática na Alemanha.

O espectador acostumado à filmografia de Aïnouz encontrará a mesma empatia que sempre demonstrou por seus personagens fictícios. No entanto, o elemento surpreendente é seu pudor. O documentário tem receio de colocar o dedo nas feridas, expor a intimidade daquelas pessoas, invadir o espaço alheio. Por isso, a câmera praticamente não entra nos cubículos destinados a cada família para retratar momentos do cotidiano. Temos uma única imagem das refeições, outra única de um corte de cabelo, e mais uma cena solitária de um personagem sugerindo, em diálogos, a existência de conflitos entre os moradores do aeroporto devido à falta de privacidade.

O documentário decide não abordar alguns temas importantes. Quem quiser descobrir mais sobre o estado psicológico dos refugiados, a situação de seus países natais, as circunstâncias da travessia, suas atividades profissionais, seus amores, sua visão de mundo, a especificidade de cada cultura local, precisará buscar em outros lugares. Aeroporto Central alude a todos estes temas, às vezes numa menção solitária, antes de passar rapidamente a outras questões. Mesmo Ibrahim, narrando a sua própria história em off, o faz a partir de um texto escrito, que retira qualquer emoção e espontaneidade da confissão. A cultura muçulmana está presente acima de tudo na narração dos meses em árabe – sem imagens referentes, através de sons anônimos.

Nota-se indecisão no que diz respeito ao ponto de vista e ao posicionamento da câmera (e da equipe, por extensão) dentro daquele espaço: Aïnouz não está nem distante o suficiente para ser esquecido, “invisível” como nos documentários de Frederick Wiseman, nem próximo a ponto de assumir a sua intervenção naquele espaço (caso de Human Flow, por exemplo). Estamos perto das pessoas, porém sem conhecê-las. O incômodo dos refugiados com a presença da câmera é óbvio e assumido em determinadas cenas, no entanto o projeto não pretende refletir sobre a sua própria posição de estrangeiro naquele espaço.

Assim como o brasileiro não pertence ao hangar, os refugiados não pertencem ao novo país – ainda não, pelo menos –, e os aviões abandonados não pertencem mais ao THF. O tema central do não pertencimento é reduzido à sugestão, por motivos de humildade, candura, discrição. O discurso se resume a um otimismo vago e resignado: “É preciso esperar”, os refugiados dizem uns aos outros, sem se questionarem sobre o papel do governo alemão ou das comunidades internacionais na gestão destas vidas humanas. 

Talvez o incômodo seja bem exemplificado por uma cena quando, durante o Natal, um Papai Noel adentra o local repleto de muçulmanos. A câmera retrata o evento como uma celebração qualquer, sem levar em consideração as inúmeras contradições culturais, políticas e sociais presentes naquela cena. Percebe-se então a necessidade da equipe em se impor, refletir em profundidade sobre si mesma e sobre o conteúdo captado.

Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.