Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Bixa Travesty

Algumas mulheres têm pênis

por Bruno Carmelo

Para uma artista iconoclasta, um filme iconoclasta. Este documentário brasileiro acompanha o fluxo criativo tão rico quanto anárquico de Linn da Quebrada, cantora, performer e ativista trans. Ela reivindica sua posição de mulher, enquanto preserva o pênis e o evita o implante de seios. O corpo de Linn constitui um ato político, e também o material através do qual constrói a sua arte. Para ela, o masculino e o feminino são questões de identidade, ao invés de genitalidade. Além disso, acredita que os indivíduos são livres para buscarem o prazer onde quiserem, com quem quiserem, do modo que quiserem. Os corpos são livres, fluidos, transformáveis e transformadores.

Estas são apenas algumas das ideias de Bixa Travesty, articuladas através de uma estética igualmente libertária. Os cineastas Kiko GoifmanCláudia Priscilla intercalam apresentações de Linn, trechos de suas reflexões numa rádio, momentos de intimidade em casa, encenações queer-kitsch em banheiros e saunas, intervenções pela cidade e afins. O projeto sublinha a necessidade de apropriação do espaço urbano, apesar das convenções sociais que buscam confinar o corpo transexual à margem e à invisibilidade. Linn é o centro em torno do qual orbitam as ideias, imagens e corpos do filme.

Além de se tornar centro, a artista também se posiciona como sujeito. Isso vai de encontro à objetificação propiciada por alguns documentários bem-intencionados, porém limitados à representação distanciada e condescendente de indivíduos LGBT. Aqui, é a protagonista quem controla o discurso, é ela quem fornece as imagens e temas, quem determina o ritmo e influencia no corte final. Não por acaso, é creditada como co-roteirista num processo de criação horizontal, como explicou a atriz numa entrevista. A noção de igualdade em frente às câmeras foi pertinentemente reproduzida atrás das câmeras.

Enquanto a artista destrincha temas complexos em suas falas, Bixa Travesty proporciona uma experiência leve, divertidíssima e corrosiva, como convém às composições de Linn. Pau, cu, buceta e afins são ditos e mostrados sem pudor algum. De acordo com este ponto de vista, o corpo é um terreno de exploração pessoal, de prazer próprio, não podendo ser freado por tabus, pudores ou quaisquer regras morais e institucionais. As canções sobre o prazer do sexo, a discussão com a mãe sobre a feminilidade e a provocação com a amiga Jup do Bairro confirmam a ideia de que estas construções não emanam de uma persona fictícia. Pelo contrário, são vividas organicamente pela artista no dia-a-dia.

O cinema brasileiro independente tem produzido diversos filmes LGBT de qualidade, com discursos progressistas e olhar empático às minorias. Mesmo assim, poucos são tão radicais quanto este documentário, que forma com o excelente Pinta (2013) uma dupla de projetos sem medo de moldar e reconfigurar os corpos. Afinal, ao contrário do que pregam os discursos conservadores, a arte serve para brincar com significados e sensações, e não precisa se conformar às crenças de ninguém além dos criadores.

Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.