Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
A Cidade dos Piratas

Para iniciados

por Taiani Mendes

Alguns filmes são para todas as pessoas, outros oferecem diferentes camadas de leitura dependendo do grau de conhecimento prévio do espectador a respeito do que está sendo abordado e há uma terceira classe das mensagens codificadas, das salas onde só entra quem tem a chave, das obras direcionadas e exclusivas. Uma enorme piada interna, A Cidade dos Piratas é desse último tipo e certamente agita os neurônios e memórias dos conhecedores da arte de Laerte Coutinho e do cinema de Otto Guerra, mas aos não iniciados permite apenas a observação confusa e uma ou outra risada.

"Livremente inspirada na vida e obra de Laerte", a tecnicamente impecável e quase insana animação é difícil até de resumir em sinopse. Inicialmente trata-se de uma produção estrelada pelos personagens dos quadrinhos Piratas do Tietê, mas a afirmação da transgeneridade da cartunista entra em cena, e logo depois também o próprio diretor Otto Guerra, confuso com o gênero da amiga, o gênero do filme, abatido por problemas de saúde e de desenvolvimento do projeto. É muito para assimilar e o ritmo não para. Só aumenta com a entrada de mais e mais personagens de Laerte, crises de Guerra, representação de Bolsonaro, pesadelos, sonhos, perguntas indiscretas à cartunista, desenho, TV... "O QUE ESTÁ ACONTECENDO?".

É um filme de referências (inclusive cinematográficas, várias e ótimas), um filme de vanguarda, um filme de morte ao pênis e ode ao pênis, enquanto egotrip. Otto afirma, preocupado, que o longa-metragem não para em pé e essa análise completamente verdadeira é o que ele melhor apressenta aqui. É fato, a única coisa capaz de sustentar A Cidade dos Piratas é a bagagem do espectador a respeito de seus personagens.

O cineasta fala de história do Brasil - inclusive a que está sendo construída no momento -; levanta debate pertinente sobre questões de autoria; apresenta vida e obra de Laerte e ainda se coloca no meio de toda essa salada. Tantas aberturas que isoladamente gerariam por si só grandes conteúdos, inevitavelmente provocam cansaço no público, ininterruptamente estimulado visualmente e chamado a refletir e reconhecer. Chega a ser extenuante.

A Cidade dos Piratas é totalmente excêntrico e bem gaúcho - meio como era Júpiter Maçã, que tem músicas na trilha -, e a quem não conseguir se segurar no caótico impulso criativo de Otto a partir de Laerte, cabe a dica de Fernando Pessoa, também presente na animação: "As coisas não têm significação, têm existência".

Filme visto no 46º Festival de Gramado, em agosto de 2018.