Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Domingo

Uma família de posses

por Bruno Carmelo

Começa o ano de 2003, e um núcleo burguês se reúne em torno de seu maior patrimônio: o casarão amplo e decadente, com as paredes descascadas. O imóvel sustenta o status pela proximidade do lago, pelas quadras de tênis, pelo conjunto de taças de cristal. Acima de tudo, existem os caseiros e as criadas na cozinha, a quem se grita assim que algo dá errado. A família percebe uma onda de mudanças – Lula acaba de ser eleito presidente, a situação financeira da matriarca Laura (Ítala Nandi) se deteriorou -, mas se recusa a abrir mão dos privilégios. Esta aparente normalidade da concentração de riqueza constitui o tema central de Domingo.

Depois de explorar a crônica social em Casa Grande, o diretor Fellipe Barbosa, junto da cineasta Clara Linhart, abraça a comédia de costumes. O humor é extraído pela promessa de uma explosão, graças à galeria de personagens à beira do colapso, como Bete (Camila Morgado), excitada pelo álcool e pela cocaína, Eliana (Martha Nowill), grávida prestes a dar à luz, Miguel (Ismael Caneppele), artista que não se encaixa no estilo de vida luxuoso da mãe, Inês (Silvana Sílvia), a empregada doméstica cansada da exploração dos patrões, Eduardo (Michael Wahrmann), um pai machista preocupado com a possível homossexualidade do filho pequeno... As situações são exemplares demais, e portanto alheias ao naturalismo. Os diretores não se incomodam em situar a narrativa a um passo da fábula.

Por se tratar de um “filme coral”, com uma dúzia de personagens dividindo o protagonismo, o resultado não evita certa heterogeneidade. Camila Morgado e Augusto Madeira são excelentes no núcleo cômico da história, embora personagens possivelmente interessantes como Mauro (Chay Suede) e Rita sejam subaproveitados. Quando todos os começam a fazer sexo uns com os outros, a narrativa assume seu tom grotesco, improvável – vide as desconfortáveis transa no escritório e dentro de um carro. Os diretores não são sutis na comédia, muito menos na abordagem de hierarquias sociais, explicitando os conflitos ao limite da paródia.

Pode-se questionar a ausência de ponto de vista: todas as vozes de equivalem, vistas de modo distanciado pela câmera onisciente. Não existe uma figura centralizadora, tampouco se concentra no olhar de uns sobre os outros. Rumo ao final, duas belas cenas com Laura diante da televisão e com a empregada caminhando numa estrada sugerem uma tomada de posição mais clara, até a chegada da festa de 15 anos, que dilui esta impressão. Com seus inabaláveis planos de conjunto, Domingo impede que o desconforto se impregne também na estética, na composição das imagens, ou que o silêncio e o espaço digam algo por si próprios. Apesar da sucessão de bons duelos verbais, a experiência seria mais enriquecedora caso incorporasse o humor à construção imagética, sem depender tanto do roteiro e das composições do elenco.

Como obra política, temos um discurso discreto: a tomada de posse de Lula ganha tempo considerável na trama, mas jamais se transforma em conflito, permanecendo um pano de fundo tão incômodo quanto o sumiço das taças de vidro ou o batom nos lábios de um garotinho. Mesmo assim, Barbosa e Linhart conseguem inserir discussões sobre machismo, homofobia, drogas e concentração de renda. É particularmente divertido – ou seria desolador? – escutar o discurso de conciliação do ex-presidente no momento em que novas eleições são marcadas por prisões arbitrárias, atentados e agressões da mídia.

Com Domingo, Barbosa oferece seu longa-metragem mais acessível, diante do qual famílias de classe média não devem ter dificuldade para estabelecer um paralelo com parentes e conhecidos. Os diretores se arriscam numa bem-vinda proposta de “filme do meio”, ou seja, a ponte necessária entre os grandes projetos populares e os pequenos filmes herméticos.

Filme visto no 51º Festival de Cinema de Brasília, em setembro de 2018.