As dores do fim
por Francisco RussoEm 1974, Ingmar Bergman lançou o filme definitivo sobre relacionamentos: Cenas de um Casamento é um profundo e realista estudo sobre o comportamento humano a dois, ao mesmo tempo duro e contundente. Pouco mais de quatro décadas depois, chegou a vez de Noah Baumbach trazer sua versão sobre o tema - sem deixar de mencionar o clássico de Bergman, em breve citação através de uma reportagem estampada na parede. Entretanto, por mais que ambos os filmes tratem do mesmo assunto, há diferenças consideráveis entre eles.
A começar pelo fato de História de um Casamento ser um filme tipicamente americano, o que significa incluir não apenas a carga emocional decorrente do término de um relacionamento mas, também, todo o imbróglio jurídico decorrente dele e, obviamente, o custo envolvido - americano jamais escanteia questões financeiras. Mais ainda: a minúcia judicial é tamanha que envolve questões envolvendo a localidade da moradia do então casal, com regras próprias de Los Angeles que não valem para Nova York, e vice-versa. Por mais que seja algo perfeitamente compreensível ao público, até mesmo pelo didatismo com o qual a questão é apresentada, o trecho do filme que trata especificamente da batalha de advogados é justamente o mais desinteressante do filme, pela distância do sentimento existente entre Charlie e Nicole. Mesmo compreendendo a proposta do diretor (e roteirista) Noah Baumbach, no sentido de demonstrar o quanto todo este processo deteriora qualquer relacionamento, mesmo um que caminhava para um desquite amigável, o excesso de jurisdiquês cansa.
Outro diferencial importante neste História de um Casamento é o fato da disputa girar não propriamente em torno dos sentimentos dos então casados, ou não só destes sentimentos, mas especialmente em torno da guarda do filho. Inclusive, há no filme um diálogo preciso que retrata bem o contexto de tal embate: "os pais disputam [a guarda] porque amam seus filhos, mas ao mesmo tempo tiram dinheiro da educação dos filhos para bancá-la". Por mais que seja uma lógica sensata, mais uma vez ressalta a importância do dinheiro para a sociedade americana e, paralelamente, evita questões mais profundas acerca das necessidades emocionais de cada um, que por vezes passam longe da razão - algo no qual o filme de Bergman é exemplar. Aqui, a ausência e a quebra de confiança são a grande mola-mestra dos desentendimentos.
Ainda assim, História de um Casamento é um filme tocante. Já na abertura traz uma afetuosidade que faz com que o público torça por aquele casal que, logo em seguida, está em vias de se separar. A ruptura de emoções é gritante e dolorosa, intencionalmente calculada pelo diretor, bem como a espiral de desencontros que apenas piora a situação, a cada nova rodada. Como de hábito, Baumbach salpica aqui e ali diálogos inspirados sobre tal processo, seja acerca da desconstrução de uma vida a dois ou meramente analisando a posição de homens e mulheres diante do tribunal - atenção ao trecho em que Laura Dern discursa sobre o direito à falibilidade dos homens, absolutamente brilhante.
Entretanto, tal proposta funciona muito também graças aos atores escalados. Tanto Scarlett Johansson quanto Adam Driver têm momentos de brilho intenso, ela no primeiro ato e ele no último, nos quais tão bem demonstram a dor e o desespero do fim. Afinal de contas, ninguém se casa ou mesmo se relaciona já pensando no término e, quando este acontece, é também um atestado de fracasso. Tanto Charlie quanto Nicole sabem bem disso.
Bastante verborrágico e por vezes explorando planos-sequência, Baumbach constrói um filme que poderia ser também chamado de confessionário, tamanhas são as aflições existentes de lado a lado. Com uma fotografia clean que alterna entre closes e ângulos bem abertos de forma a captar todo o ambiente, o diretor ainda molda a trilha sonora de forma a retirá-la por completo sempre que há algum embate por ocorrer, realçando a força das palavras. Trata-se de um filme maduro e necessariamente doloroso, que dialoga com o espectador graças às suas experiências de vida. Ou, como diria o poetinha Vinícius de Moraes:
"Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.