Ensaio de um crime
por Bruno CarmeloO espectador pode levar um bom tempo para compreender onde a história de Burning pretende chegar. O roteiro dedica uma hora de duração (de 2h30 no total) apenas à apresentação dos personagens: Jong-soo (Yoo Ah-In), um entregador pobre e solitário, Hae-mi (Jeon Jong-Seo), a vizinha de infância que o encontra por acaso na rua, muitos anos depois, e Ben (Steven Yeun), colega coreano encontrado por ela numa viagem à África. Presenciamos a lenta aproximação entre os três, num momento em que o filme não apresenta nenhum conflito para além da sugestão de um triângulo amoroso.
Então, numa conversa banal, um deles confessa um pequeno prazer criminoso. Nada muito grave, provavelmente, mas ainda assim um crime, de natureza imotivada. A confissão é recebida com surpresa, e gera um efeito de mistério: por que este ato específico? Por que a periodicidade escolhida para os atos (uma vez a cada dois meses)? Qual será o próximo alvo? Num roteiro tradicional, a história correria para chegar logo a este momento fundamental. Mas o diretor e roteirista Lee Chang-dong, partindo de um conto de Haruki Murakami, toma o tempo de criar um universo no qual os atos seriam plausíveis.
Assim, compreendemos a proximidade dos moradores com a Coreia do Norte, a crise econômica na Coreia do Sul, as decisões ameaçadoras de Donald Trump transmitidas na televisão. Entendemos a dificuldade financeira dos personagens – dois deles pobres, e o outro, riquíssimo, o que leva a uma tensão imediata dentro do trio – o distanciamento dos pais, a sensação de abandono. A amizade se constrói numa mistura de ciúme, inveja e carinho verdadeiro um pelo outro. Jong-soo, Hae-mi e Ben possuem uma construção emocional riquíssima. Por isso, quando a paranoia se instaura entre eles, não temos a sensação de uma obra maniqueísta: o criminoso não é um monstro, ele não foge, e sempre acolhe os amigos com um sorriso no rosto.
O fator mais excepcional de Burning se encontra na capacidade de sugerir, cena após cena, que algo gravíssimo aconteceu no passado, ou está prestes a acontecer a qualquer momento. O espectador é convidado a fazer suas apostas, mesmo sem ter provas concretas. Afinal, o responsável afirma ter cometido vários crimes, mas não temos evidências. Essa faísca, no entanto, serve para desencadear outras: quando Hae-mi some da narrativa por um tempo, podemos rapidamente deduzir o culpado, quando encontramos maquiagem feminina na casa de um homem que vive sozinho, fazemos outras deduções. O roteiro convida o espectador a acusar sem certeza, tornando explícita a engrenagem da paranoia. Talvez pessoas estejam em risco. Talvez tudo não passe de uma mentira.
O suspense asfixiante é construído de modo magistral por Lee Chang-dong. Os longos planos-sequência, com luz natural e câmera na mão, constroem uma bem-vinda aparência de realismo, que serve a tornar as cenas de sexo e de tensão ainda mais fortes. Em momentos muito específicos, uma trilha sonora perturbadora embala a narrativa. Longas cenas de dança de Hae-mi seminua, ou de troca de olhares entre os dois rapazes durante uma festa, contribuem à construção do desejo. Talvez a multiplicação de atos violentos não ocorra para impedir o infrator de agir, e sim aplacar o desejo sexual que nasce nos personagens quando estão uns com os outros. O fogo do título funciona muito bem para sugerir ao mesmo tempo o perigo e a libido, ou as pulsões de vida e de morte numa única imagem.
Os manuais de roteiro costumam dizer que a melhor conclusão é aquela que soa inesperada quando aparece mas, ainda assim, passa a impressão de ser a única solução possível para o conflito. Este é exatamente o caso de Burning: em meio ao impasse, é difícil imaginar como esta história vai se fechar. Mas o cineasta cria uma cena final espetacular, catártica e, ao mesmo tempo, inevitável. A imagem é belíssima por sua estética e sua perversão, ou seja, pela combinação entre a estranheza e a aparência de naturalidade.
Talvez desde Dogville, de Lars von Trier, o espectador não era convidado de maneira tão incisiva a questionar sua solidariedade com a vingança do protagonista. Até onde vai nossa empatia por um assassino? O fato de ter sofrido justifica a crueldade da revanche? É legítimo cometer um crime para prevenir crimes maiores? A história se encerra com pontos de interrogação importantes. Esta obra magnífica não deve sair da cabeça do espectador tão cedo.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.