A responsabilidade do cinema
por Bruno CarmeloUm homem comum consegue um trabalho temporário para o governo do Canadá. Ele não tem muitas opiniões, tampouco grandes habilidades, mas é escalado para fazer gravações do povo inuíte ao extremo norte do país. “É para registro”, explica de maneira vaga o vice-ministro. Solitário, sem outras perspectivas profissionais, ele parte e começa a filmar as grandes paisagens desérticas, as casas isoladas na planície, a degradação do meio ambiente, os carros e galpões abandonados.
Tuktuq carrega grande sensação de melancolia. O diretor e ator principal Robin Aubert cria um protagonista introspectivo, de fala doce e triste, além de um tanto inocente. As imagens do filme são aquelas gravadas por ele, ou seja, praticamente não o vemos com a câmera na mão. O drama canadense se desenvolve como as gravações longínquas de um sujeito anônimo, que conversa com o chefe sempre em voz off, com o som distante sobreposto a longas paisagens vazias. Ele quer conhecer o objetivo das gravações, quer descobrir porque os políticos solicitam especialmente imagens sangrentas dos inuítes decepando renas. Mesmo sem resposta, acata os pedidos dos superiores.
Aos poucos, o espectador descobre, junto do cameraman, o intuito dessas gravações: elas visam convencer a opinião pública de que o povo autóctone é selvagem e o local não possui grande interesse antropológico. Com a desvalorização do retrato, o governo poderia remover os habitantes e explorar as terras para a mineração. Qual é a responsabilidade profissional do personagem neste caso? Ele apenas cumpre ordens, mas tem seus registros sensivelmente desvirtuados do objetivo original. O questionamento leva a uma reflexão metalinguística sobre o cinema: todo cineasta é responsável pelo uso feito de suas imagens? E pela interpretação que o público terá delas?
O projeto responde “sim” à primeira pergunta, “e não” à segunda. Seria impossível controlar as sensações dos espectadores, por mais que se busque um efeito preciso. Por exemplo, a cena sangrenta da morte das renas visava captar as técnicas de caça da cultura inuíte, de acordo com o protagonista, mas foram interpretadas como maus-tratos e barbárie pelo público na Internet. No entanto, ele se torna responsável pelas imagens feitas, pelo ângulo, pela maneira como foi empregada. “Um travelling é questão de moral”, dizia Godard, em alusão metonímica a todas as linguagens cinematográficas.
Tuktuq (que significa "rena", em língua inuktitut) retrata o importante e gradual despertar político do personagem. “É como acordar de um longo sono”, ele diz, em referência à descoberta de outra cultura, e à percepção das práticas corruptas ao seu redor. O interesse etnográfico de Robin Aubert pela população inuíte é louvável, embora um tanto distanciado. Não vemos o protagonista em contato com essas pessoas, não conhecemos o nome de nenhuma delas, suas vontades, suas histórias de vida. A alteridade é aceita, valorizada, porém não compreendida. Por mais que extraia uma complexa discussão a partir de um minimalismo notável, o filme constrói sua empatia em detrimento do humanismo.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.