Afetos frios e corpos desconectados
por Renato FurtadoRodeada por inúmeros produtos, desde amaciantes de marcas duvidosas a rolos de papel higiênico, uma mulher esvazia sua bolsa, recheada por produtos surrupiados das prateleiras do mercado Superpina. O caos, iniciado pela intervenção dos seguranças do estabelecimento, aumenta quando dois policiais chegam para levar a ladra, uma confusa ocorrência seguida por um apagão e pelo choro incessante de uma menina, que coroa a primeira série de eventos incongruentes da malsucedida e raramente engraçada comédia Superpina: Gostoso É Quando a Gente Faz!
Estreia do pernambucano Jean Santos na direção de longas-metragens, gravando um projeto baseado em seu curta homônimo, esta obra sofre, principalmente, por causa de suas paralisantes indecisões. Acompanhando as desventuras sexuais de um grupo de jovens do Recife, o filme frequentemente depara-se com bifurcações e sua própria incapacidade em escolher uma dentre as múltiplas possibilidades abertas por um roteiro malabarista, que lida com mais objetos lançados ao ar do que suas mãos podem segurar e/ou manejar.
Esta é uma comédia de absurdos, com um pé no experimentalismo, ou um projeto humorístico mais tradicional, e portanto linear, centrado em gags e personagens plausíveis? Um estudo do desejo ou um veículo para exibir uma ampla variedade de orgias desmotivadas? Há algo a ser dito aqui, no fim das contas, ou a produção justifica-se pelo prazer da filmagem e do pandemônio causado por situações não necessariamente conectadas entre si? Não há conclusão possível: Santos ora busca o riso fácil, ora busca o discurso autoafirmador das minorias, principalmente dos homossexuais e das mulheres.
O maior deslize de Superpina é, em outras palavras, desperdiçar tantas oportunidades de propor debates interessantes de uma só vez por estar preocupado com as questões erradas nos momentos errados. A premissa, por exemplo, brinca com a potencialidade de se construir um retrato preciso de uma juventude que reinvindica o corpo e sua sexualidade como formas de expressão primordiais contra as estruturas vigente; estamos falando, afinal, de uma substância misteriosa e psicotrópica que infunde em seu usuário um apetite sexual voraz, que ultrapassa quaisquer barreiras criadas por noções pré-concebidas de gênero.
Como fundamentar melhor uma subversão às normas, consciências, contratos e convenções sociais — sistemas de poder intrinsecamente machistas, homofóbicos e transfóbicos — do que com a invenção do "Amor Primo", este elemento alucinógeno tão rico em significados e potências que poderia até mesmo ter sido criado por um pastiche mais atrevido do autor sci-fi Philip K. Dick? Provavelmente existem poucas soluções mais divertidas e pertinentes do que a que é colocada por Santos em seu filme de estreia, cuja maior tragédia particular é, de fato, não conseguir explorar a mina de ouro que tem em sua posse.
Falando em sofrimento, a propósito, Superpina também deixa desaparecer outra chance de elevar o nível de suas proposições narrativas quando transforma sua sequência mais tocante e triste em mais uma cena de transição entre mais uma esquete despropositada e outro número musical deslocado. Trata-se do momento em que Paula (Dandara de Morais) — uma aspirante a cantora de músicas delicadas em francês que está presa ao dever de ser a vocalista da banda de seus amigos de talentos questionáveis — toca seu violão, sozinha, para a mais inusitada das plateias: homens à procura de sexo online via webcam.
Sem sequer dar-se conta da profusão de corpos que passeiam pela tela de seu computador, a mais nova funcionária do mercado Superpina foca apenas em sua arte. No auge de seu isolamento, a protagonista desta comédia poderia ser o ponto de partida para outro projeto: um exame dramático — de partir o coração, diga-se de passagem — e muito real acerca da incapacidade de comunicação encontrada hoje na contemporaneidade, especialmente pelos jovens; distanciamento este provocado, entre outros fatores, pelas redes sociais, que privilegiam as aparências e minam as possibilidades de conexões afetivas.
O que recebemos, ao contrário, é o surgimento de uma esquisita figura, que faz Superpina soar quase como uma autoparódia: um homem misterioso e anônimo cujo único trabalho é vestir uma máscara do Fofão, o aterrorizante personagem infantil, mas com a adição de dreads. Nasce, assim, o Fofão Rasta — espécie de arauto do amor livre —, uma das criações mais absurdas do cinema brasileiro recente e símbolo maior da preferência de Santos em focar em elementos incongruentes — a menina mimada no mercado — e na ausência de motivações de suas cenas de orgasmos simulados e orgias intermináveis.
Estas sequências destacam-se, sim, por seu arrojo visual — possivelmente nocivo para espectadores epiléticos pela agressiva frequência luminosa —, com a câmera capturando um atraente mosaico de corpos e cores distintos em profusão. Mas também, por outro lado, denotam o vazio que há por trás das imagens de Superpina. 1h40 depois de vermos um carrinho pegar fogo e um surfista nu, seguimos sem compreender a razão de ser desta produção. No fim das contas, para além de suas diversões pueris, há um filme ousado dentro de Superpina: ele só não consegue se libertar de suas contraditórias amarras.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.