Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
As Boas Intenções

As feridas da família patriarcal

por Bruno Carmelo

Um teatrinho infantil. Uma boneca de pano, alguns dinossauros de brinquedo, uns animais de fazenda. A diretora Beatrice Segolini utiliza esses recursos para apresentar a sua própria família. Seria uma visão infantilizada dos fatos? Não exatamente. Através do humor, ela busca representar o irrepresentável: a violência praticada pelo pai durante toda a infância e um pesado trauma vivenciado décadas atrás.  

A comicidade absurda permeia a integralidade do documentário italiano, que expõe com franqueza esta família disfuncional. Segolini retorna ao lar para confrontar a mãe e os dois irmãos sobre o passado: não seria melhor tocar no assunto, fazer as pazes com as dores e seguir em frente? Mas nem todos pensam da mesma maneira. Entre jantares e passeios de carro, ela se confronta à arrogância do irmão mais velho, à ingenuidade do irmão mais novo e ao conformismo da mãe, principal vítima dos abusos.

As Boas Intenções traça um impactante retrato da família burguesa e patriarcal. Apesar da violência sofrida, estas pessoas reprimem a dor dos acontecimentos como se fizessem parte da ordem natural das coisas: é normal o pai bater nos filhos, agredir a esposa, ignorar a morte de um ente querido. Às pessoas ao redor, cabe aceitar os fatos em silêncio, porque “Ele vai continuar sendo o seu pai/marido”. É preciso amar as funções mais do que as pessoas que as ocupam, insiste a moral vigente. A cineasta, em parceria com Maximilian Schlehuber, utiliza ótimos materiais de arquivo, exemplares da dominação paterna e da sugestivos da influência que tiveram na vida destes adultos.

Talvez a preocupação estética fique em segundo plano: as imagens são mais funcionais do que propriamente belas. No entanto, elas compõem um conjunto competente, amarrado por uma montagem capaz de separar o que deve ser exposto e o que deve ser sugerido, ou ainda quando respeitar o silêncio e quando cortar assim que algum ponto doloroso demais é abordado. O projeto discute a moral da direção: que direito tem Segolini de expor a todos, buscando culpados ou inocentes? Até onde pode ir o cinema como fonte de justiça, reparação ou vingança?

O documentário se beneficia da costumeira impressão de sinceridade vinda da exposição de si, da fragilidade do próprio autor. O filme não hesita a incluir o tenso confronto entre Beatrice e o pai, muitos anos após a separação, discutindo as agressões passadas. A autoria do projeto cinematográfico coloca a filha em posição de dominação em relação ao pai, por cuidar da edição e da versão final dos fatos? Seria o cinema apenas um instrumento de manipulação da realidade?

Apesar de tantas questões éticas interessante no que diz respeito ao cinema, As Boas Intenções não escapa à impressão de egocentrismo, com mais um projeto de uma artista querendo falar de si mesma, de seu universo, sua família, sem a preocupação de inserir os fatos num contexto social, nem compará-los com outras famílias, por exemplo. A arte é utilizada como terapia, como ferramenta útil sobretudo à própria diretora. Por que o espectador veria um conteúdo produzido essencialmente para seu próprio autor? A sensação de voyeurismo e de intromissão do público deixa um gosto amargo. Mesmo assim, pela franqueza nos retratos e pela busca de metáforas e associações poéticas, o resultado se sobressai entre outros do gênero.