Homenagem
por João Vítor FigueiraMeu Tio e o Joelho de Porco fica na corda bamba entre o registro afetivo (e, portanto, subjetivo) e a vontade de resgatar e apresentar a história e as contribuições de banda presente no título do filme. O resultado é um documentário que consegue transparecer de forma muito clara o respeito e admiração que seu realizador sente pelo homenageado, o que acaba sendo uma faca de dois gumes. Ao se assumir como homenagem, a obra evita flexões críticas que apenas enriqueceriam e aprofundariam seu conteúdo.
Depois de lançar os curtas Batalha, a Guerra do Vinil (2007) e A Guerra dos Gibis (2012), Rafael Terpins, animador por formação, trabalha em muitas frentes neste projeto claramente pessoal que marca sua primeira incursão pelo território do longa-metragem. O realizador se dedica a revisitar a trajetória de Tico Terpins, provocador músico paulista que foi um dos fundadores da banda Joelho de Porco. Morto em 1998, vitimado por um infarto, Tico havia assumido uma referência paterna na vida de Rafael, que perdera seu pai, o empresário Sérgio Henrique Terpins, uma década antes. Mesmo antes disso, ainda na infância o tio roqueiro e brincalhão despertava a curiosidade do sobrinho, agora revisitada neste projeto.
De natureza anárquica e filosofia proto-punk, o grupo movimentou o cenário paulistano com letras irreverentes e uma postura cáustica e sempre imprevisível nos palcos. Desta forma, firma-se como o ponto alto do filme o uso de imagens de arquivo que ganham a tela de forma contundente, expondo a essência de Tico e seus companheiros de banda com mais potência do que qualquer depoimento elogioso de amigos ou familiares. O longa-metragem mostra o seu melhor quando deixa a música da banda falar por si mesma. Resgatar o Joelho de Porco é, por si só, um ato crítico da historiografia do rock nacional. Deste filme podem até partir reflexões paralelas e mais profundas: Como tantas bandas tão interessantes puderam ficar relegadas a um nicho? Por que não se valoriza mais o que é feito por aqui em termos de rock 'n' roll? Outro acerto é costurar a narrativa com os galopantes timbres das faixas de São Paulo 1554/Hoje, o segundo e mais famoso álbum de estúdio do Joelho de Porco lançado em 1974.
É positivo que este filme seja capaz de evitar o caminho fácil de construir uma narrativa que aponte apenas as qualidades de seu biografado. Porém, as ressalvas são tão breves e superficiais que o clima de celebração atenua o que poderia ser um retrato mais honesto de Tico como pessoa. Através das entrevistas, Meu Tio e o Joelho de Porco pode até não forçar o espectador a acreditar que Tico foi o maior de todos os gênios musicais, mas os depoimentos são unilaterais na maneira como o descrevem como um ser de um humor voraz e elogiá-lo por isso. Contraditoriamente, o próprio filme mostra que as piadas podiam nem sempre ter graça para todos, vide a repulsa de Billy Boyd, cantor argentino que foi vocalista do Joelho de Porco, em participar do filme. Nas imagens de arquivo, o rosto de Bond aparece borrado, oferecendo uma incômoda pergunta que o filme opta por não responder de forma satisfatória à respeito daquela "presente ausência".
Como prova do envolvimento com o tema de seu filme, o próprio Rafael narra momentos do documentário em primeira pessoa e o diretor parte para a frente das câmeras (por vezes parecendo desconfortável com a posição) ao dirigir um carro por lugares da cidade de São Paulo que foram importantes para a banda. O recurso é uma tentativa de oxigenar o formato tradicional de documentário, mas não se encaixa tão bem com o resto da narrativa. Já a ideia de usar um boneco animado com técnicas de stop motion para representar a irreverência de Tico é interessante e funciona muito bem, trazendo leveza para a o projeto. O boneco tem uma presença ácida, que interrompe e contesta as lembranças dos entrevistados como um típico diabinho de desenho animado.
Meu Tio e o Joelho de Porco está longe de ser um filme ruim. O projeto se justificaria apenas por reapresentar de forma consistente o legado de uma banda que poderia ser mais lembrada. De qualquer forma, Rafael Terpins entrega um longa que até é dinâmico e espirituoso; seu olhar apaixonado consegue imprimir na tela alguns momentos tocantes. Entretanto, é possível que a intimidade do cineasta com o assunto não tenha deixado o diretor explorar mais e melhor as nuances de seu homenageado.
Filme visto no 22º Cine PE – Festival do Audiovisual, em junho de 2018