Das sombras para as sombras
por Francisco RussoÉ bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Lanny Gordin, tema deste documentário. O próprio título do filme é uma referência a este ostracismo, vigente desde a década de 1970, após a participação do músico em vários discos e shows de ícones da MPB, como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Erasmo Carlos. Mais do que propriamente resgatá-lo, o grande mérito de Inaudito está na habilidosa condução narrativa que não só reconhece as curiosas peculiaridades do homenageado como, também, o fato dele ser absolutamente desconhecido nos dias atuais, aliado à pecha de mestre que possuía em seu auge.
Não por acaso, o início do longa-metragem é justamente com Lanny entre as sombras, sem ser identificado. Aos poucos somos apresentados a alguém de andar curvado, fala estranha, olhar penetrante e sorriso torto, com um perfil de Nosferatu. A inevitável sensação de estranheza diante de sua aparição é também transferida para o lado estético, a partir de planos extremamente criativos que buscam sempre o inusitado. É desta forma que o diretor Gregorio Gananian trabalha bastante a temática do reflexo distorcido: a câmera nem sempre está em Lanny, mas sim na forma como é retratado, seja pela água ou por algum metal. Metáfora visual ao que foi e ao que é na atualidade.
A este painel pouco usual envolvendo personagem e ambientação soma-se ainda a persona do próprio Lanny, que a todo instante ressalta o quanto é reverenciado por sua capacidade musical. Acordes musicais surgem aqui e ali, seja através de uma guitarra ou mesmo cantando, o que amplifica ainda mais também o questionamento: como pode ser ele o guru que tanto apregoa? Mais do que responder a esta pergunta, Gregorio está mais interessado em investir neste perfil tão particular, de forma a ao mesmo tempo apresentar o Lanny atual e investir no diferente. É neste ponto que o filme oferece um desafio ao espectador, convidando-o a imergir no mundo de seu homenageado, seja através de seus pensamentos ou pelo instigante retrato estético apresentado.
Assim sendo, o diretor e sua equipe desfilam uma sucessão de sequências cuja beleza está justamente na estranheza. Como, por exemplo, o andar de costas de todas as pessoas em um cenário, onde até mesmo um ônibus em trânsito se movimenta de trás para frente, com a maior naturalidade. Ou ainda quando o enquadramento surge de cabeça para baixo, com o público vendo Lanny a partir de seu reflexo na água. A câmera colocada em um enorme pincel, onde ideogramas chineses são escritos no chão, ou mesmo dentro de um violão, de forma a acompanhar o dedilhar sob um olhar interno, são apenas exemplos da criatividade empregada nesta busca pelo diferente.
Soma-se a isto o clima onipresente de mistério em torno de Lanny, trabalhado não apenas por sua persona mas também pelo curioso fato de ter nascido na China, o que lhe traz uma aura de "mistério do Oriente". Vale também ressaltar a boa participação de Jards Macalé, que trabalhou com Lanny em seu auge, não só pelo modo como surge mas por também se enquadrar na estética implementada.
Intencionalmente estranho, Inaudito é uma conjunção rara de um diretor que tão bem soube captar a essência de seu personagem principal de forma a criar uma fascinante narrativa própria, sem medo de navegar por ambientes abstratos e pouco usuais. É também um filme que necessita que o espectador aceite tal realidade, sem esperar respostas fáceis que jamais virão. Trata-se de uma experiência cinematográfica, onde enquadramentos, trilha sonora e mantras estão longe de buscar o palatável - e, justamente por isso, é tão divertido e original.
Filme visto na 21º Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2018.